Um fisiologismo descarado – exclusivo

Wojciech Andrzej Kulesza

As reformas educacionais no Brasil têm uma longa tradição de autoritarismo, expresso significativamente em suas denominações, geralmente indicando a pessoa responsável por sua realização ou a norma legal que a instituiu. Tal foi o caso, por exemplo, da reforma Leôncio de Carvalho de 1879, da reforma Capanema de 1942, da LDB de 1961 ou da 5692 de 1971. Todas essas propostas de reformulação do conjunto da educação nacional ou de algum de seus ramos ou níveis foram viabilizadas graças à alguma autoridade que as julgasse prementes e necessárias e que tivesse o poder de implementá-las. Independentemente do grau de participação de gestores, professores, estudantes ou mesmo da população nesse processo, muito variável em cada caso, as reformas sempre foram ungidas fortemente pelas autoridades originais proponentes. Daí o inerente caráter político dessas medidas, não só por integrarem as políticas públicas, mas principalmente por se referirem à educação no interior da pólis, isto é, ao processo no qual está em jogo sua reprodução ou mudança. É neste sentido que toda reforma levanta sempre na sociedade alternativas radicais de transformação social: reforma ou revolução?

O fato da reforma se realizar no âmbito da educação não implica que seus pressupostos principais, ou mesmo suas motivações, se inspirem ou dependam de proposições advindas do campo das ciências da educação, ou seja, geralmente a autoridade proponente não é educacional. Mesmo as reformas escolanovistas dos anos de 1920-30, as mais dependentes de uma nova pedagogia como indicado pela sua própria designação, ficaram muito distantes de realizar a educação anunciada em seus discursos, tanto é que a Escola Nova ainda permanece, para muitos educadores, como um ideal a ser atingido. As discussões e disputas acirradas daquela época, como as que ocorreram entre católicos e liberais, pouco modificaram o cerne das reformas, conduzidas que foram, por uns e outros, para atender as demandas determinadas pelo processo de modernização da sociedade brasileira então em curso. Processo que podia ser melhor apreendido entre os jovens que frequentavam a escola, onde grassavam de forma categórica os desejos de renovação. O campo estritamente pedagógico, portanto, não é a melhor arena para se debater a oportunidade, a necessidade ou a justeza de qualquer proposta de reforma educacional.

No caso da recente proposta de reforma do ensino médio estabelecida pela Medida Provisória nº 746/2016, seus quatro primeiros artigos tratam da organização pedagógica deste nível de ensino, tema principal das críticas que caracterizam consistentemente essa iniciativa como um golpe contundente na escola secundária brasileira perpetrado pelo atual governo. Resgatam-se nessas análises as conhecidas mazelas que tem acometido de modo recorrente nosso ensino médio e a inadequação da proposta para atender as demandas atuais dos jovens, seja daqueles que abandonam as escolas, seja dos que as ocupam porque anseiam por sua melhoria. Se a possibilidade de obter um certificado, válido para ingresso no ensino superior através do ENEM exatamente na idade em que deveria completar o ensino médio, contribui para uma evasão precoce, os resultados negativos das avaliações realizadas pelo MEC escancaram sua falta de qualidade. Todavia, com exceção do último artigo da MP, mera formalidade, e do artigo que revoga a legislação anterior de estímulo ao ensino da língua espanhola nas escolas brasileiras, tendenciosamente ali colocado, entre “outras providências”, para tentar solapar os esforços de integração cultural do Brasil na América Latina, seus outros onze artigos tratam minuciosamente de seu objetivo explícito: instituir uma “Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral”. Assim, parece residir nesses artigos a motivação principal, evidentemente ausente de sua exposição de motivos, dessa apressada proposta de alteração da legislação educacional: não importa o currículo, a formação básica e até mesmo a profissionalização, trata-se de estabelecer uma política pública que assegure o controle social da juventude.

Com a maciça canalização dos investimentos privados para o ensino superior e a municipalização do ensino fundamental, a grande maioria dos estudantes do ensino médio (85%) hoje está estudando em escolas geridas pelos governos estaduais. Num cenário de míngua nos cofres públicos, agravado ainda mais no caso dos recursos para a educação pelo ajuste fiscal promovido pela atual política econômica, a proposta de financiamento da escola integral contida nessa MP foi feita na medida certa para abastecer generosamente os aliados políticos. De olho nas eleições de 2018, momento crucial para os políticos locais garantirem sua permanência no poder através do voto, essas verbas públicas retiradas com prioridade do FNDE, constituem a “doação” de que precisavam para viabilizar suas campanhas, daí sua urgência, atropelando dessa forma as discussões sobre o ensino médio que vinham ocorrendo no Congresso Nacional já há alguns anos. Na realidade, sob a aparência demagógica de solucionar os graves problemas do ensino médio e, mais ainda, atender às reclamações da juventude, essa proposta governamental, de um fisiologismo cristalino, visa apenas proporcionar uma alternativa de financiamento aos candidatos alinhados com o situacionismo estadual. De qualquer outro ângulo e, principalmente, do ponto de vista educacional, essa MP não tem nenhuma outra justificativa e, portanto, tal como o governo que a propôs, deveria ser sumariamente descartada. Fora!

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