Um convite ao vôo

Uma versão livre e recriada de um texto original de Eduardo Galeano quando chegou o ano  2001

Carlos Rodrigues Brandão

 Sonhemos um novo tempo, um novo século, um novo milênio…

O ar da Terra e o do pulmão dos seres vivos estará livre de todos os venenos, inclusive os que provêm dos medos e das paixões humanas mal vividas.

Nas ruas as pessoas, os pássaros, os cães e os carros aprenderão a conviver em paz.

As pessoas, das crianças aos velhos, não haverão de ser dirigidas pelos automóveis, nem programadas pelos computadores, nem medidos com os relógios e nem compradas em supermercados, nem olhadas pela televisão.

Como o computador, o aparelho de televisão deixará de ser o membro mais importante da família. Ambos serão tratados como o ferro de passar e a máquina de lavar roupa. A mesa do jantar voltará a ser um centro da vida na casa e as pessoas terão muito mais tempo para estar juntas, vivendo as suas vidas e, não, as dos personagens das novelas.

As pessoas trabalharão para viver ao invés de viverem para trabalhar. O trabalho será uma escolha e entre os diferentes tipos de trabalhos as diferenças serão de gostos e estilos, e não de valores e de preços. Todo o trabalho será uma arte de um gesto de criar e, não, uma servidão ao ato de fazer.

A ética da vida e mesmo os códigos penais serão revistos. Poucos crimes serão tão graves quanto o querer ter e possuir sem tréguas, ao invés de viver e partilhar os bens, o tempo e a vida com os outros. Ser rico será mais detestável do que ser ladrão. Aliás, não haverá haver ladrões, porque cada vez mais tudo tenderá a ser de todos e todas as pessoas viverão entre trocas e dádivas. Sonhar e viver da gratuidade generosa, olhar os lírios do campo e prestar uma grande atenção ao canto dos pássaros e às brincadeiras das crianças serão virtudes de uma imensa importância.

Em lugar nenhum serão presos os jovens que se recusarem ao serviço militar. Poderão ser punidos os que insistirem em prestar tal serviço, o que não será nada fácil, pois as forças armadas tenderão a serem abolidas e os fuzis e os canhões serão fundidos para os artistas criarem altos monumentos dedicados à paz.

Os políticos ouvirão menos os economistas e os planejadores e mais os poetas e as crianças. Os economistas não chamarão de “nível de vida” o “nível de consumo” e nem de “qualidade de vida” o que pode ser medido e comparado. A felicidade de cada pessoa e de todas as pessoas será o indicador essencial e a razão de ser do trabalho dos políticos … que não receberão dinheiro algum por este trabalho solidário. Os políticos terão aprendido que as pessoas não gostam de comer promessas. Aliás, eles nada terão a prometer, porque serão escolhidos pelo povo para prestarem a ele o serviço devido pelo tempo devido. Políticos não serão mais ricos do que pedreiros e nem mais poderosos do que jardineiros. Aliás, o nome “político” será substituído por “jardineiro da polis”.

Os cozinheiros e os que comem as comidas acreditarão que galinhas e lagostas não gostam de serem assadas e fervidas. As pessoas conviverão com os animais do Mundo como companheiros da aventura da Vida e só haverá vegetarianos. Também não serão comidos os palmitos e todas as plantas em que se necessite sacrificar uma árvore para enriquecer a mesa do almoço.

Os historiadores não acreditarão que as nações gostam de serem invadidas. As crianças aprenderão mais “história mátria” e menos “história pátria”. Os verdadeiros heróis serão as mulheres e os homens que criam a história de todos os dias. Os grandes heróis serão objeto de desconfiança, até prova em contrário, sobretudo os que vivem montados em cavalos ou em tronos.

Ninguém será honrado, quem quer que seja, por fazer exatamente o que se espera dele. Será mais importante ter um filho do que disparar um foguete, escrever um poema do que vencer uma batalha, edificar um jardim do que conquistar um território, aprender uma língua indígena do que ensinar a sua aos índios.

Não haverá mais a guerra – aberta ou disfarçada – contra os pobres, mas contra a pobreza. Os pobres de fato “herdarão a Terra” antes que ela acabe. As indústrias que enriquecem os empresários e os executivos decretarão falência. Algo mais solidário do que as cooperativas ocuparão o lugar de umas e de outras.

Ninguém morrerá mais de fome, porque ninguém mais morrerá de indigestão. Comer será o ato mais coletivo possível, pois não será concebível que alguém coma o que falta a um outro. Todo o comer será uma festa entre todos. Quem não tiver por perto uma outra com quem compartir o que come em um momento, convidará um passarinho, um cachorro, um gato das ruas, mas não se comerá em solidão.

Justiça e liberdade terão quase um mesmo nome, um mesmo rosto. Será impossível imaginar uma sem a outra. Já que não poderá haver pessoas livres e pessoas não-livres ou menos-livres, todos serão livres por igual. As pessoas não serão cidadãs do mundo onde por igual as mesmas leis feitas por outros serão aplicadas sobre todas. Serão cidadãs do mundo em que cada uma e todas as pessoas serão o tempo todo as criadoras das próprias leis que regem suas vidas.

Uma mulher negra será presidente do Brasil e uma outra dos Estados Unidos da América do Norte. Uma mulher índia governará a Guatemala e uma outra o Peru. Brancos, negros e índios serão tão igualados em seus direitos humanos quanto diferentes em suas escolhas de modos de vida.

As mulheres da Praça de Maio, na Argentina, terão dado ao mundo inteiro uma lição de saúde mental e os que geraram o seu sofrimento, um exemplo inesquecível de insanidade.

A Igreja Católica e o Judaísmo farão uma revisão nos Dez Mandamentos. Um ou dois deles esquecerão os pecados da carne e ordenarão celebrar os mistérios do corpo. Todas as religiões celebrarão em línguas e com ritos diferentes a presença do nome de um mesmo deus. Seu nome será: AMOR.

O cristianismo aprenderá com outras religiões que o amor entre os homens e entre as mulheres deverá estender-se, de igual maneira, à Vida e a tudo o que é Vivo, a toda a Terra, mãe e casa de todos nós, e todo o Universo. Tudo o que existe será objeto de celebração e tudo o que é vivo compartilhará dos mesmos direitos e dos mesmos afetos. Os direitos humanos serão estendidos para serem direitos da vida, entre os que compartem a Vida.

Serão reflorestados os desertos do Mundo e os desertos da Alma. A água pura será tanta que sobrará para todos.

Não haverá mais excluídos e nem os desesperados, e nem os pobres e nem os esquecidos, e nem os injustiçados e nem os oprimidos, e nem os seus opostos. E nunca mais os que excluem e geram desesperos, e nem os que fazem as injustiças e nem os que oprimem. Nunca mais haverá o sofrimento gerado por alguém que faça alguém sofrer.

Despreocupados da justiça, porque ela reinará absoluta, viveremos entre os que comparte a aspiração da beleza, do bem e da verdade, ou os seus plurais em todas as línguas. Todos se entenderão através de suas convergências e todos se comunicarão fraternalmente através de suas diferenças.

“A perfeição continuará sendo um aborrecido privilégio dos deuses”; mas em um mundo que aprenderá a ser bem menos confuso e fastidioso, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia será vivido como se fosse o primeiro. A hora do nascer do sol e a hora do pôr do sol serão celebradas como um milagre único que se repete a cada dia.

Eduardo Galeano pensou e escreveu.

Carlos Brandão repensou e reescreveu pouco depois de Eduardo Galeano haver partido.


 Imagem de destaque: Anna Kolosyuk / Unsplash https://zp-pdl.com/get-quick-online-payday-loan-now.php https://zp-pdl.com https://www.zp-pdl.com

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