Trabalho, pesquisa e ócio em meio às angústias experimentadas no tempo de quarentena

Raphael Machado
Alice Spindula

Angústia. Este é o título do romance – terceiro livro – de Graciliano Ramos escrito enquanto estava preso pelo governo de Vargas e publicado em 1936. Na leitura encontramos o narrador Luís da Silva, funcionário público de 35 anos, solitário, desgostoso da vida. No decorrer da trama, entre fatos do passado e do presente, numa narrativa frenética, Luís se envolve com Marina. Um grande monólogo interior que tem como fio condutor o medo de ser pego, a angustia de se confrontar com o as “dívidas do passado”, com um presente que não consegue projetar qualquer futuro promissor. Este livro e a breve apresentação anterior, rasa de minha parte, foram feitas por meio das lembranças de outros tempos que vieram à tona nestas semanas de reclusão social. Na noite anterior da escrita deste texto, por ironias do mundo do sonhar, ele apareceu em meus sonhos, sob uma mesa de canto do quarto. Aconteceu? Sim, tanto quanto eu tenho uma mesa de canto no espaço íntimo. O que importa é a memória afetiva em torno dele.

Amigos apontaram que a leitura do romance de Graciliano Ramos pode ser feita de forma aproximada à de Crime e Castigo de Dostoiévski, publicado em 1866. Sei que a febre é um elemento semelhante entre os dois, assim como as lembranças da vivência dos tempos passados e presentes se entrecruzando sob o sentimento do medo. Será que vencer as agruras da culpa daria aos personagens centrais desses livros a possibilidade de estabelecer condições de existência de futuros? O fim de Luís nada belo, nada glamoroso ou de conto de fadas, determina a natureza do homem, fatigado e derrotado pelos seus temores e cobrado pelos atos de uma vida tortuosa. Graciliano também pereceu, pouco depois da circulação de sua obra.

Não trato aqui de crítica literária! Meus anseios intelectuais residem em outras searas; tangentes à literatura, às narrativas históricas. Certo ou errado na leitura – se é que alguém pode afirmar isso de um romance – as reações dos personagens dos livros mencionados, guardadas as proporções, têm sido evocadas em minha memória nestes últimos dias, justamente pela sensação de agonia entre o que se deve fazer e o que pode ser feito, em tempos em que projetar futuro(s) tem sido, mais do que anos anteriores, angustiante. A vivência do tempo de pesquisa e do tempo da (con)vivência com a Covid-19 tem afetado meu cronograma de estudos. Não estava preparado para o confinamento social e a mudança de hábitos. Os sentimentos de cobrança, de culpa, de medo em torno do cumprimento dos cronogramas e das metas pessoais de trabalho têm dominado o dia a dia.

O “home office” é prática habitual de todo pesquisador. Entre idas e vindas dos centros universitários, acadêmicos, bibliotecas, museus, arquivos públicos e privados, etc. – no caso de historiadores e colegas que desfrutam de pesquisas que necessitam das visitas aos espaços de “conservação do passado – o trabalho em casa é uma constante, pois a leitura, a análise dos dados coletados, a transcrição dos documentos, são parte do cotidiano residencial. A reclusão social, inclusive, é necessária neste processo de produção do conhecimento. Assim como a posterior socialização do que foi concebido. Visto isso, não seria, de fato, o isolamento social e o ato de “ficar em casa” que afetaria o trabalho de pesquisa. Até por que as reuniões de grupos de trabalho continuam acontecendo via mídias sociais. O que alterou foi à presença física entre os sujeitos, o contato humano carnal. Se pensarmos que isso já ocorre, de certa maneira, há algum tempo pelo estabelecimento da web e das redes sociais e as diversas mídias existentes, os sentimentos despertados não seriam novidade. Porém, tudo mudou. Mudou? A experiência do tempo vivido sim.

Uma espécie de cobrança individual se estabelece no cotidiano sobre o tempo possível de trabalho e o de fato trabalhado. Isso também já era algo corriqueiro. Porém a concepção de trabalho, o tempo vital que deve ser dedicado a ele e os tipos que devem ser significados socialmente ainda são os mesmos. A constante fomentação da ideia de que o trabalho deve ser contínuo, que é formador de caráter, que “dignifica o homem”, de que “tempo não trabalhado é tempo perdido”, impera mesmo sob esta realidade de reclusão.

Trabalhar é importante. Viver para ele não. Não trabalhar não é perder tempo. A própria máxima “perder tempo” é algo irreal. Quem acredita nisso? Quem consegue não pensar em trabalho ao menos de 12 a 14 horas do dia? Quem não vive aceleradamente? Infelizmente desconheço. Eu cobro cada segundo do meu tempo em que não estou no trabalho acreditando que deveria estar em meio às tarefas designadas para ele mesmo já tendo executado 6 ou 8 horas diárias em torno do ofício. Deveria?

Não existe método global de trabalho e de tempo diário do pesquisador destinado às tratativas da pesquisa. Porém o processo de pesquisa, para todos, reside na prática dialética entre a produção da problemática e as condições de realização das respostas possíveis em torno dela é diário e intenso. E isso necessita pausas objetificadas para o ato de “deglutinar” cada fase deste processo. Independente da área do conhecimento, do objeto pesquisado e das perguntas propostas. A pausa é essencial no processo de produção científico.

Quem nessas condições não sonhou com o objeto estudado? Já acordei várias vezes à noite para anotar algo que o universo onírico trouxe nas madrugadas. Foi de suma importância para a construção das tratativas em torno da narrativa histórica que vinha estabelecendo. E não só no trabalho científico. Na vivência do cotidiano é de suma importância experimentar o tempo da interiorização das discussões e debates estabelecidos no dia a dia para aprender a ser melhor consigo e com o coletivo humano. Porém, qual o limite para o trabalho? Assumindo que exista um limite, em O Elogio à preguiça de Paul Lafargue, de 1880, aponta a necessidade do distanciamento de tal ação humana e a valorização do tempo do ócio. Nada de “ócio criativo” envolto de trabalho. “Perder tempo” é necessário. Dê um tempo!

Não quero construir novos significados em torno dos conceitos de trabalho ou em contrapartida o de ócio. Nem quero desqualificar as ações humanas em prol do melhoramento das sociedades e do convívio social. O trabalho é força motriz de toda e qualquer sociedade e em qualquer tempo histórico. Inclusive, em torno dele e do domínio sobre as ações e os sujeitos que o realizavam, constituíram-se as condições e contradições do mundo moderno e contemporâneo sobre o valor do trabalho em suas instâncias e estruturas. Estou apenas problematizando o lugar do trabalho – no caso, pensando sobre o meu, o de pesquisa – em meio à pandemia.

Pede-se para ficar em casa, espaço da intimidade, da fuga da realidade da rua, dos espaços coletivos, para evitar a transmissão do vírus que assola o mundo ao passo que devemos, neste tempo de angustia e ansiedade, manter as práticas de trabalho da rua em casa, tendo como referência e perspectiva um mundo que existia antes da pandemia, que já não parece ser o mesmo e que dificilmente o será. A sobreposição de tempos está posta! Não sabemos o que virá, assim como não sabemos ao certo como terminará o dia. A possibilidade de entendimento do lugar no mundo e de como portar-se em meio à experiência tornam os sujeitos angustiantes em essência. A tormenta em torno da estreiteza dos tempos reside no fato de não saber o que está acontecendo de fato e o que virá.

Se já não tínhamos certeza alguma de como seria o futuro distante e/ou o fim do dia, a percepção agora é de que isso piorou. A enxurrada de notícias sobre a pandemia tornou pública uma crise de saúde e instaurou condições reais de outras crises, novamente, de paradigmas de conceitos em torno da concepção da temporalidade histórica, já questionada desde o fim da União Soviética, bem como do trabalho e do ócio, além das questões em torno dos valores sociais de vivenciar as formas de estar em coletividade nos espaços públicos. Latente também, por tais elementos, as condições de crises pessoais. A possibilidade de entendimento do lugar no mundo e de como portar-se em meio à experiência tornam os sujeitos angustiantes em essência. A tormenta em torno da estreiteza dos tempos reside no fato de não saber o que está acontecendo de fato e o que virá.

Pela imersão diária e em longas horas nos processos de produção, o trabalhador muitas vezes perde a consciência das contradições existentes no processo de construção dos pilares das sociedades contemporâneas. O medo do colapso sócio-econômico acompanha o questionamento das práticas culturais e a necessidade de manutenção de certas maneiras de vivenciar as experiências de outras formas. As “lives” musicais podem ser um exemplo disso; assim como os estudos escolares e acadêmicos. A solidão no processo de produção do conhecimento é apenas uma parte do processo que necessita posteriormente, e/ou concomitantemente, do contato humano, seja ele com o outro – o professor, o colega de classe e outros – ou com o outro “eu” que se estabelece no dialogo intelectual, principalmente nos primeiros anos de vida, em que as escolas são também espaços de socialização e afirmação dos laços sociais. Educativas, as relações humanas são necessárias para a construção do sentimento de humanidade. No plural, a vida é coletiva, mesmo na clausura.

As projeções pós-modernas apontavam para um vislumbre de futuros cada vez mais próximos de presentes contínuos, que se realizavam em meio à “atualização” dos passados sob a ótica do hoje e suas necessidades. Tal dinâmica, em debate a pelo menos 20 anos entre os pensadores das temporalidades históricas, residiria sobre um eterno reviver de tempos sobrepostos e sem uma dinâmica clara e progressista de estabelecimento de condições de futuros promissores. Uma nova concepção de tempo e, em contrapartida de sociabilidades, poderia ser observada sob esta nova projeção de temporalidade. Acessar os sites de notícias e ler diariamente o aumento de número de infectados e mortos apontam para uma ininterrupta linha em direção ao futuro nefasto, da morte. Angustiante, como os personagens dos livros anteriormente citados, o dia a dia sob a presença da pandemia indica um presente cada vez maior se afastando do futuro – que futuro!? – e que, ao fim do dia, ao deitar na cama, a lembrança do natal e réveillon em família, com os queridos, de 2019, se tornam cada vez mais distantes e tomados de uma áurea de memória afetiva que teima em dizer que um dia, talvez, seremos assim novamente.

Abril de 2020 foi para refletir sobre o lugar do trabalho em nossa vida, sem tom de galhardia em torno do ócio. Entenda, à distância do trabalho podemos repensar o lugar da preguiça, do “tempo perdido” em torno da alegria, do valor da amizade, do riso em turma, da leitura descompromissada, do “passa lá em casa depois”, do contar de nuvens e desenhos nos céus que não vejo há semanas. Refletir sobre a angustia dos dias atuais enriqueceu meu trabalho, minha pesquisa, e me ensinou a viver o ócio novamente, repensando o sentido da vida e do trabalho no mundo.

Não se cobre tanto! Os prazos estão em dia. Coloque o ócio em prática.

ps: este texto foi escrito em primeira pessoa a fim de dar mais intimidade para o leitor. Porém ele é fruto de uma parceria, caseira, emotiva e intelectual.


Imagem de destaque: Drew Coffman / Unsplash

 

 

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