Trabalho e dignidade

Dalvit Greiner

Nenhum trabalho verdadeiro ofende a dignidade humana. Nenhum. Porém nem todo trabalho é verdadeiro e, portanto a dignidade humana fica totalmente comprometida quando estas atividades são realizadas. A questão maior é o fato do Capitalismo insistir na propaganda de que tudo é trabalho. Eu prefiro chamar de atividades, ou seja ação de alguém que faz ou executa coisas. E nem toda coisa executável pode ser chamada trabalho. Em geral, são atividades que se tornam indignas em função de nossa relação com o trabalho, na medida em que nosso processo de socialização prefere chamar toda relação econômica que produz algo de trabalho.

No Capitalismo, a maioria dessas atividades indignas são insalubres: adoecem quem as fazem no presente e no futuro. Não são especializadas: são atos mecânicos executados repetidamente. Mas, para o sistema é a maneira certa de baratear a mão-de-obra ao retirar um adulto da linha de produção. Basta colocar crianças pra trabalhar, exigir das mulheres uma dupla jornada e não legalizar estrangeiros… Isso tudo aumenta o exército de reserva de mão-de-obra que barateia o salário de quem trabalha por necessidade. Esse exército nada mais é do que um enorme grupo de vulneráveis, pessoas que estão à beira do precipício social, prontos para cair abaixo de uma linha que separa os mais humanos dos menos humanos, os homens das mulheres, os negros dos brancos, os nacionais dos estrangeiros, os adultos das crianças, etc. Toda separação implica na ampliação desse exército de reserva e também implica uma atividade precária.

Trabalho indigno é aquele que não confere humanidade a quem o realiza. Necessitamos vender a nossa força de trabalho no mercado: infelizmente essa é a única certeza que a realidade nos dá para a satisfação de nossas necessidades e de nossos desejos. Porém, o Capitalismo joga com essa nossa necessidade e nos oferece como saída atividades que nenhum patrão realizaria. Não falo dos gerentes e atravessadores – a classe média -, falo dos donos do capital. Aí reside o critério da indignidade no trabalho. Atividades que animalizam o ser humano em sua execução. O sistema brutaliza o ser humano ao máximo para então exigir dele esse tipo de atividade.

Ali toda a dignidade humana é desvestida para dar lugar a um animal que necessita urgentemente satisfazer os seus intintos de comer e beber. Trabalha-se para se manter vivo e apenas para se manter vivo. Nada mais. Um dos trabalhos indignos que o capitalismo mais impõe são aqueles entregues às crianças. Crianças submetidas a atividades como quebrar pedras, fazer tijolos, coletar frutos na floresta, produzir carvão, prostituir-se nas estradas, cuidar de outras crianças. Adolescentes submetidas e submetidos à prostituição, ao cuidado de casas como empregadas domésticas, ao transporte pesado de produtos. Mulheres submetidas a linhas de produção estafantes, aos cuidados da família de outros e de si.

Aparentemente, quando mais adulto mais digno. Será? Perguntemos aos limpadores de latrina na Índia e no Haiti, países que não resolveram seus problemas de saneamento básico; adultos e crianças que tiram sua sobrevivência do lixo; trabalho escravo ou em situações análogas espalhados pelo mundo todo, principalmente aqueles ligados à agricultura e às manufaturas urbanas feitas por nacionais e estrangeiros; prostituição e tráfico de drogas, para ficarmos apenas em algumas atividades. Identificá-las não quer dizer que podemos desrespeitar quem exerce tais atividades. Ao contrário, devemos lutar para que essas pessoas não precisem executá-las. Denunciar essas atividades e continuar usando o seu resultado continua alimentando o capitalismo que vai continuar usando essas pessoas.

O dito nazista dessa semana, Arbeit macht frei – o trabalho liberta – foi exposto no campo de concentração nazista de Auschwitz. O governo Bolsonaro expõe na sua campanha de volta ao trabalho nessa pandemia de Covid-19. A mim, serve para indicar aquilo que considero a atividade mais indigna do ser humano: tirar a vida de outro ser humano. E aqui, ouso incluir aqueles que o fazem por vários motivos. Não falemos apenas dos tempos de guerra: falemos do nosso tempo de suposta “paz” quando nos deparamos com vários matadores em nosso cotidiano. Desde aqueles empregados pelo tráfico de drogas – que o fazem como forma de sobrevivência – até aqueles soldados das polícias civis e militares que executam a necropolítica da familícia que nos governa no nível federal àqueles do nível estadual que mandam “atirar na cabecinha”. Esta é uma atividade tão indigna do ser humano que é impossível chama-la de trabalho.

A ética liberal – não podemos falar de uma ética capitalista – nos fala de trabalho libertador, trabalho enobrecedor e outros adjetivos. O capitalismo reduz os humanos às suas necessidades e cobra-lhes um Ética que só é possível quando os desejos se satisfazem minimamente. Porém, no campo das necessidades não existe Ética. O que precisamos ensinar em nossas escolas é a dignidade do trabalho e demonstrar os prejuízos produzidos pelas atividades indignas reservadas aos mais precarizados. É urgente quebrarmos essa cadeia para que nossos estudantes nunca experimentem essas atividades, apesar de muitos deles já a vivenciarem.


Imagem de destaque: Entrada do Campo de Concentração de Auschwitz. Foto: Tsaiproject

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