Suerte Fatal!?

Marileide Lázara Cassoli

Subo para o apartamento após mais ou menos uma hora de “caminhada” no pilotis do prédio onde moro. Na verdade, embora o espaço seja razoável, deixei de contar o número de voltas e mensuro apenas os minutos que são necessários para que o corpo e a mente sintam os efeitos positivos do ar fresco e dos movimentos do corpo. Se fosse para ilustrar a cena recorreria a um hamster, uma gaiola e a inevitável rodinha que as acompanha…  Subo, descarto os tênis, a roupa e rapidamente entro no banho. Lavo os cabelos, passo condicionador, encharco a bucha vegetal de água e sabonete. Fecho o chuveiro. Ensaboo todo o corpo e só então reabro o chuveiro e me enxaguo. Quando cumpri esse ritual pela primeira vez, logo no início do isolamento social, ao terminar o banho, só me lembrava da figura de meu pai. Esclareço: nunca tive o hábito de desligar o chuveiro me ensaboar. Desde a minha infância isso causava enorme estranhamento em meu pai. Como era possível alguém tomar um banho decente com a água caindo o tempo todo sobre o corpo? Além, é claro, do maior consumo de água e energia elétrica. Me recordo de uma conversa entre ele e o pediatra, doutor Battistetti, em Marília, interior de são Paulo, onde nasci, na qual ambos reclamavam desse estranho hábito de seus rebentos…

Sorri para mim mesma ao imaginá-lo sentado na sala me ouvindo contar a novidade:

— Adivinha? Fechei o chuveiro para me ensaboar!!! Neurose total….

Ele me olharia meio de lado, um sorriso ligeiramente debochado e certamente diria:

— Precisou de uma pandemia para que você aprendesse a tomar banho direito!!!

Meu pai faleceu em 2016. Talvez essa minha história soe estranha a muitos que me leem. Mas, para mim, foi muito tocante a recordação. Há alguns anos atrás, estudando espanhol para seleção do doutorado, me foi indicado pela professora a leitura de um dos textos que compõem uma obra intitulada O livro dos abraços. Logo no início, o autor, Eduardo Galeano, expõe de forma muito sensível o significado da palavra recordar: passar de novo pelo coração. Esses dias de isolamento têm me trazido à mente lembranças, pessoais ou não, boas ou nem tanto, das vivências, leituras, filmes, quadros, que me emocionaram e que se relacionam ao momento vivido. Misturadas às análises econômicas, políticas, postagens e lives (que não assisto…), elas me transportaram para um universo íntimo, no qual navego comigo mesma. Repassei pelo coração emoções vivenciadas em outros tempos.

Foi assim que as matinês dominicais, no extinto Cine Peduti, em Marília, me trouxeram à lembrança a versão do diretor italiano Franco Zeffirelli da história de Romeu e Julieta. O final trágico, anunciado no título original da obra, A Tragédia de Romeu e Julieta, não impediu que a adolescente de então se desesperasse ao ver Frei João encerrado em casa impedido de entregar a Romeu a carta que evitaria a fatalidade. As portas seladas visavam impedir a propagação da Peste Bubônica na cidade de Verona, nos idos do século XIV….

Fray Juan:

“Yendo en busca de un hermano de nuestra orden que se hallaba en esta ciudad visitando los enfermos para que me acompañara, y al dar con él los celadores de la ciudad, por sospechas de que ambos habíamos estado en una casa donde reinaba la peste, sellaron las puertas y no nos dejaron salir”.

Fray Lorenzo:

“¿Quién llevó entonces mi carta a Romeo?”

Fray Juan:

“No la pude mandar ni pude hallar mensajero alguno para traerla, tal temor tenían todos a contagiarse”.

Fray Lorenzo:

 “¡Suerte fatal!”.

 As epidemias da Peste Bubônica, varíola, tifo, entre outras doenças, grassaram as cidades europeias em diferentes temporalidades. A cidade de Londres, nos idos do século XVI, era cenário inspirador nesse sentido. Máscaras e quarentenas já faziam parte das medidas profiláticas de então e a disseminação das epidemias se relacionava diretamente à falta de saneamento e de higiene. Teatros eram fechados – visando evitar as aglomerações –  atingindo assim artistas, diretores, escritores e o público… Arte e vida se misturaram na narrativa de Shakespeare e perpetuaram uma história que fala, em última instância, de sentimentos que acompanham a humanidade em todos os tempos: ódios, disputas, poder, opressão, amor, liberdade, sonho e, por fim, o luto. A morte dos jovens transforma-se em expiação e acaba por promover a paz entre as suas famílias, inimigas até então. Seria essa a “lição” legada pela narrativa? A morte de inocentes provocada pela intransigência dos poderosos… Quantas serão necessárias para expiar a sociedade de seus crimes cometidos em nome do poder, da arrogância, do preconceito?

Conheci Veneza em julho de 1993. Inesquecível a visão da cidade que emerge das águas no Grande Canal. Prédios monumentais, paradoxalmente, parecem flutuar com leveza. Ruelas e pontes embelezam os caminhos a serem percorridos ao aceitarmos a aventura de percorrer a pé a cidade. Famosa pela beleza ímpar, no século XV, a Sereníssima, como era conhecida, tornou-se o centro do comércio no mundo que então se conhecia. Era a maior cidade portuária de então, chegando a ter uma média de 150.000 habitantes, um grande poder político e palácios cada vez mais luxuosos. Famosas são as suas pontes – quase quatrocentas –, seus canais, a Praça de São Marcos, seu carnaval, suas máscaras, a produção de vidro na ilha de Murano… E claro, as gôndolas. Impossível ir à Veneza e não percorrer seus canais em uma dessas embarcações tão emblemáticas e representativas da cidade. São todas de cor preta. Lindas e fúnebres ao mesmo tempo. Se prestaram em outras épocas à alegria dos passeios dos poderosos da cidade, mas também, ao transporte de corpos durante a prevalência da peste na cidade. Esta função fúnebre teria levado à adoção da cor que permanece até hoje nessas embarcações. Ou, em uma versão menos poética, a cor preta seria fruto de leis que proibiram o colorido excessivo que as caracterizava ou ainda, o piche utilizado na calefação das mesmas. Eu fico com a primeira. Ela simboliza nossa capacidade de sentir em nossa própria pele a dor alheia…


Imagem de destaque: Kuma Kum / Unsplash

 

 

 

 

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