Subjetividades docentes de um professor-investigador

Alaim Souza Neto*

Nenhum professor gosta de ter consciência, muito menos expor seus truques de manipulação de alunos, de seus tiques, suas manias, seus deslizes verbais, suas cóleras, seus momentos de sadismo ou de pânico, suas incoerências, suas ambivalências, suas despolitizações, suas reações de defesa e embaraço, de fragilidade e dúvida. É uma profissão, até mesmo por ser relacional, que requer uma cota considerável de narcisismo e, por isso, uma cota de orgulho – mesmo que seja pretensioso. Mas, se for verdade que ensinar é fabricar artesanalmente saberes, provavelmente teremos que abrir mão de certa arrogância narcisista que, quando não atendida, leva-nos de chofre à sensação de impotência” (PEREIRA, 2016, p. 216).

Esta memória se origina com o objetivo de refletir e compartilhar de algumas experiências investigativas que temos vivenciado, as quais têm marcado nossa formação acadêmica e desenvolvimento profissional docente. É resultado de reflexões produzidas durante o nosso estágio de pós-doutorado, no ano de 2017, quando nos colocamos na posição de acadêmico e de professor, de forma combinada e complementar. Dizemos isso, porque pudemos ser ensinante e ensinador ao mesmo tempo, sendo supervisionados pela carinhosa amiga e professora Roseli Zen Cerny e ministrando aula no programa de pós-graduação em educação da Universidade Federal de Santa Catarina.

Nesse pós-doc, tivemos a oportunidade de problematizar as relações entre a integração que os docentes fazem das tecnologias digitais no contexto escolar e, sobretudo, as suas subjetividades em interfaces com diferentes campos de estudos: do Currículo e da Formação de Professores. Continuamos nossa formação em torno de objeto de pesquisa dos últimos anos: a integração pedagógica de tecnologias digitais ao currículo escolar.

Metodologicamente, mergulhamos pelas narrativas autobiográficas produzidas pelos acadêmicos/as de um curso de Pedagogia de uma universidade pública e que já atuam como professores(as) durante a disciplina Educação e Tecnologias Digitais, além das narrativas de mestrandos e doutorandos na disciplina Formação Docente, Subjetividades e Tecnologias Contemporâneas.

Quanto às subjetividades docentes, no contexto brasileiro, temos autores discutindo relações entre a Psicanálise e a Educação, ajudando-nos a pensar a profissão do professor como uma das tarefas impossíveis e incompletas (CODO, 1999; PEREIRA, 2011). Eles se fundamentam na ideia de que todo ato educativo é relacional, dependente do outro e, portanto, imprevisível e contingente. Além disso, carrega em si o empreendimento do fracasso, muito em função da paixão humana pela ignorância.

No tocante às nossas pesquisas, o trânsito pelos dados coletados tem evidenciado o quanto o exercício da docência narcísica profissional, em meio à cultura digital, tem se distanciado sobremaneira do ato de aprender e se reduzido apenas ao de ensinar, na tentativa de manter fielmente a forma da gramática escolar moderna, diga-se de passagem, em que pese a transmissão do conhecimento e o conteudismo. Em particular, sobre o quê ensinar, poderíamos entrar na enseada de questionar qual conhecimento a transmitir, se o poderoso ou dos poderosos? (YOUNG, 2007), mas este não é o mote desse relato.

Queremos nos ater, sobretudo, às subjetividades docentes que temos nos deparado quando do desafio da integração das tecnologias digitais em nosso cotidiano escolar. Subjetividades que se materializam na insegurança ou medo docente, retirada da zona de conforto, perda da autoestima, perda de autoridade instrucional, desmanche das certezas adquiridas na formação inicial ou vida de estudante, desestabilização das práticas pedagógicas, enfim, subjetividades que se manifestam em torno do não-saber o que fazer, como fazer e para quê fazer quando o assunto é a integração de tecnologias.

Sabemos que não são poucas as demandas exigidas aos super professores da atualidade. Mas, além de elas nos desestabilizarem, colocarem em dúvida em relação à atividade profissional, elas nos ajudam a compreender o cenário histórico-social em que estamos inseridos, e nele as tecnologias digitais se apresentam como instrumentos culturais de mediação pedagógica, não numa perspectiva celebratória de que tecnologia tudo salva, mas numa perspectiva crítica atenta às possibilidades e aos limites e perigos que ela carrega consigo.

Nesse contexto, o não-saber docente pode representar uma potência para problematizar a atuação docente na atualidade, já que ele pode nos desnaturalizar do imperativo do “saber” ou “ter” conhecimento, construídos e solidificados pelo discurso capitalista e saberes prévios reprodutores da universidade, admitindo-se assim, poder se demitir da condição de impotência e, porventura, consentir a impossibilidade? Quando admitimos a condição do não-saber como meio de formação, fizemos as pazes com a incerteza, com a dúvida e abrimos espaço em nossa atividade docente para respirar, contemplar o conhecimento, colocando em suspensão transitória a força e o peso da tradição escolar. Assim, criamos em nós, caminhos à invenção, à modificação, à alteração, sobretudo, em oposição à imitação e reprodução, sem se autopunir, autocastigar por não ter as certezas.

Obviamente, que nesse contexto, a consciência das nossas fragilidades é uma das razões para o sofrimento psíquico da profissão, porque temos dificuldade para abrir mão da nossa “arrogância narcísica”, a qual mascara a nossa “falta” de saber, e tantas outras “faltas”, como falta de internet, falta de formação e falta de infraestrutura tecnológica, etc. Rancière (2015, p. 24-25) alerta: “O embrutecedor não é o velho mestre obtuso que entope a cabeça de seus alunos de conhecimentos indigestos […] Ao contrário, é exatamente por ser culto, esclarecido e de boa-fé que ele é mais eficaz”.

Assim, coloquemo-nos a refletir sobre a epistemologia do (não) saber de professores. É ela que nos tem feito argumentar em nossas pesquisas sobre o processo de integração pedagógica de Tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC) ao currículo, que fazemos a nós mesmos, a seguinte questão: o que necessita (não) saber o professor para ensinar com tecnologias digitais? Do embrutecer ao emancipar, assim como fez seu personagem Jacotot, Rancière (2015) nos ajuda a configurar uma relação entre o mestre ignorante, aquele que desconhece o seu próprio conhecimento, e a emancipação daqueles que se apropriam da sua falta ou ausência.

Diante de novos desafios subjetivos, como a integração das tecnologias digitais nas práticas curriculares, a implantação e regulação de novos currículos, a precariedade das condições de trabalho, a desvalorização profissional, o descompasso entre a universidade e a escola, a incompletude das formações docentes, enfim, esta memória pretende simplesmente colocá-los a refletir sobre sua formação e atuação profissional docente, já que esse tem sido um dos nossos movimentos durante os últimos tempos.

Partimos do pressuposto de que as subjetividades docentes estão presentes na escola e na nossa condição histórico-social e que precisamos compreender como se configuram e quais os seus impactos para a atividade docente no espaço da sala de aula de modo a pensá-las e considerá-las na elaboração de propostas de formação docente. Nesse sentido, convidamos os leitores, colegas professores, a prestarem atenção ao aspecto relativo às competências subjetivas e sua importância para o desenvolvimento profissional docente. É muito interessante perceber que entre a problematização dessas competências, emergem com muita força vários discursos entre nós que nos paralisam ou anestesiam frente aos desafios da profissão do impossível. É preciso assumir a condição de incompletude e inacabamento que ela carrega.

Da nossa experiência, resta-nos que precisamos estar atentos a como nos relacionamos com os “não saberes” e as “faltas”, como mobilizamos ou não a mudança, a inovação, enfim, como enfrentamos os desafios que são postos, são questões importantes não apenas para compreendermos os modos como temos integrado as tecnologias ao currículo escolar, mas, fundamentalmente, para debater a nossa profissão e formação. Certamente, toda essa dimensão individual é contingenciada e construída por uma dimensão coletiva. Mas, parece-nos que é na contramão que temos caminhado.

A guisa de concluir, é mais que hora de acordarmos desse torpor falacioso dos manuais pedagógicos que, se bem ou mal nos doutrinam, acabam determinando nossos atos, processos, posturas. Não podemos aceitar essa condição e muito menos nos estabelecer à rotina acéfala, sem reflexão crítica. Sabemos que não há preparação prévia suficiente, mas uma formação autoformativa, contínua, politizada e bem ao sabor dos acontecimentos ou insurreições do real, preparando-nos para lidar com questões que ao menos tangenciem a incerteza, a dúvida, o medo, serão sempre bem-vindas.

Em meio a tantas subjetividades contemporâneas, não podemos ser ingênuos e imaginar que um tipo de formação ou curso pode facilitar nosso trabalho pedagógico. A aposta é no rol de competências docentes, investindo cada vez mais na imprevisibilidade desta tarefa. É nessa perspectiva que esta memória os convida a refletir para enfrentar os desafios de aprender e ensinar.


*Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em cursos de graduação e pós-graduação. Líder do grupo de pesquisa Observatório de Práticas Curriculares (OPC) e membro do grupo de pesquisa Repercute – Rede de Pesquisa em Currículo e Tecnologia. Atualmente, investiga o processo de integração de tecnologias digitais ao currículo escolar e as subjetividades docentes desse processo para os processos de formação de professores e discussões críticas em torno do currículo.

Referências:

CODO, Wanderlei. (Org.). Educação, carinho e trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes; Brasília: CNTE: Universidade de Brasília. Laboratório de Psicologia do Trabalho, 1999.

PEREIRA, Marcelo Ricardo. O nome atual do mal-estar docente. Belo Horizonte: Fino Traço, 2016.

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

YOUNG, Michael F. D. Para quê servem as escolas. Revista educação e sociedade. v. 28, n. 101, p. 1287-1302, 2007.


Imagem de destaque:  bantersnaps / Unsplash

 

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