Sobre Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl (e algo do nosso tempo)

Alexandre Fernandez Vaz

Sieg Heil! (Salve Vitória!) vocifera Rudolf Hess na tribuna, dando início, há oitenta e cinco anos, a uma das mais importantes reuniões políticas do século vinte. A assistência não hesita em responder, devolvendo-lhe a saudação. Em Nuremberg, Alemanha, em setembro de 1934, celebrava-se o congresso anual do Partido Nacional-Socialista Alemão. Eram dias de bradar o belicismo e exercitar a mística nazista que pretendia unificar povo, nação e partido.

Não era convenção política comum. Dela foi feita uma das mais importantes peças dos anos que viram o cinema expandir-se como propaganda e entretenimento. Leni Riefenstahl, aos trinta e poucos anos, preparou e dirigiu Triunfo da vontade (Triunph des Willens), longo documentário sobre evento. Poucos anos depois ela realizaria Olympia, em duas partes, sobre os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, com o qual desenvolveria a contemporânea forma de se assistir esportes. O filme de 1935 não é mero registro do evento de Nuremberg, mas, ao contrário, toda a mise-en-scène é resultado de cuidadosa preparação do cenário – a própria cidade de Nuremberg – para que o evento acontecesse para ser filmado. Posição das câmeras, trilhos, ângulos, deslocamentos, tudo foi pensado em função da filmagem. Estava posta a missão de construir um artefato para ser apreciado em noitadas de cinema em cada canto da Alemanha, endossando a unidade interna e a crença na infalibilidade do projeto nacional-socialista e no destino glorioso não apenas do país, mas do mito do germanismo.

Já de início lemos em letras brancas sobre fundo escuro: são vinte anos do início da Primeira Guerra Mundial, dezesseis do início do “sofrimento” (a humilhante derrota), dezenove meses desde o “renascimento alemão” – a tomada definitiva do poder e a instituição do III Reich, em 1933. Logo aparecem as nuvens e um pequeno avião, e vemos Adolf Hitler, o Führer, chegar a Nuremberg pelo céu. Em solo é recebido pelo “povo alemão”, que por todo o filme é exortado a ser único, sem divisões de qualquer tipo, principalmente de classe ou região. Hitler e outros membros da camarilha nazista passam os dias supervisionando paradas militares das tropas regulares e de elite, desfiles de trabalhadores e de jovens vindos de todas as partes da Alemanha e de além-mar (do Brasil houve gente que engrossaria as fileiras nazistas na Segunda Guerra, tema que aparece no ótimo Aleluia, Gretchen, de Silvio Back). Saúdam os rostos aparvalhados, falam para si mesmos e para autoridades cúmplices, deslocam-se em coreografias. Trabalho, juventude e raça são fetiches repetidos à exaustão na combinação de imagens e discursos; a trilha sonora é triunfalista, Richard Wagner à frente. A montagem cinematográfica é das mais competentes. Os jovens aparecem disponíveis, oferecendo-se para o trabalho e para dos mantras e rituais, ou em camaradagem misógina e caprichando na higiene. Poucos anos depois entregariam a vida nas trincheiras do Leste, mas agora surgem perfilados, repetindo palavras de ordem e fazendo promessas que reafirmam o mito do Blut und Boden (sangue e terra) na expectativa de uma Alemanha que será a pátria de todos os teutônicos do mundo.

Membros do exército e das tropas de elite, crianças, mulheres, os poucos homens que não são soldados, jovens acampados, todos parecem atuar para a câmera de Riefenstahl, que não poupa close-ups e combina os planos abertos das grandes coreografias com enquadramentos fechados, demorados, das lideranças. Elas se mostram carismáticas e convincentes. Há sorrisos e solenidade. Com excelente fotografia, que em alguns casos faz lembrar o melhor do expressionismo alemão, o documentário inaugura uma era, a da propaganda política contemporânea. Depois dele, nenhum político é menos que um ator e jamais a política pôde, no Ocidente, desvencilhar-se do carisma superlativado pelas imagens sequenciais em movimento.

Tudo isso pouco se alterou desde os anos 1930. Em tempos de um Brasil que com seus desatinos surpreende o mundo, o filme de Riefenstahl ganha nitidez em seu caráter seminal. As redes sociais mostram a importância de atuar, impressionar, seduzir, já que a discussão de ideias e projetos é não apenas supérflua, mas inútil. Para tanto, as técnicas e narrativas inauguradas em Triunfo da vontade são ainda modelo e inspiração, mesmo que reduzidas ao nível mais doméstico, o do tweeter.

Há hoje muito mais recursos tecnológicos. Mas, seguem os enquadramentos que cultuam a personalidade, as narrativas que proíbem a reflexão, os políticos que mostram “firmeza” e que entoam a emoção da paternidade do “povo”. Diz-se o que o assistente “quer” ouvir, confirmando seus preconceitos e os ressentimentos coletivos. Mais ou menos como há tantos anos, em certo país europeu que se preparava para a guerra total. Vale a pena ver e rever Triunfo da vontade, essa obra-prima do fascismo.


Uma versão anterior deste texto foi publicada em Subtrópicos, n. 4, p. 11, 2.2.2014, sob o título de Política por imagens.

Imagem de destaque: Reprodução

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