Sobre Isolamento, Nudes e uma Oportunidade

Laís Patrocino*

O isolamento social como medida de contenção da pandemia do coronavírus tem trazido desafios nos mais diversos aspectos de nossas vidas. Um deles, com consequências diretas para a saúde das mulheres, é o aumento da violência doméstica, notificado em diferentes países e contextos.

O isolamento também tem representado o aumento do uso de meios digitais de comunicação, seja para o trabalho ou para as relações pessoais. Do mesmo modo, tem-se observado o aumento das vivências da sexualidade pela internet. Em alguns países, como Argentina e Colômbia, elas têm sido até mesmo estimuladas como medidas sanitárias.

O aumento da violência contra a mulher na internet, entretanto, também tem sido noticiado. Trata-se da violência de gênero já exercida tradicionalmente com algumas novas características relacionadas ao uso de meios digitais. Tais práticas ainda não têm nomenclaturas difundidas e saber nomeá-las torna-se essencial para combatê-las.

Concursos de nudes são outra novidade dos tempos de isolamento social. O aumento do tempo em casa também pode significar mais tempo para olhar para si, para explorar a própria sexualidade e, por que não, fotografar a própria nudez. Sexting é o nome da prática de troca de mídia digital erótica entre pares, cujo conteúdo pertence à pessoa remetente. Embora a descoberta e exploração da sexualidade seja característica da adolescência, não se limita a essa fase da vida.

É preciso, porém, que saibamos identificar claramente o que se trata de práticas saudáveis, correspondentes à livre expressão da sexualidade, daquelas que são violentas e vitimam, na grande maioria das vezes, mulheres. A pornografia não consensual é o compartilhamento sem consentimento dessas mídias eróticas e pode ter as características de pornografia de vingança – quando a exposição pública se inicia após término de relacionamento – e de sextorsão (ou extorsão sexual) – quando há chantagem privada envolvendo as mídias.

Há, por trás desses atos, uma tentativa de controle e punição da sexualidade das mulheres. A internet aumenta o caráter de exposição exponencialmente, já que não há total controle de onde o conteúdo será hospedado e menos ainda de seu compartilhamento. É bastante comum o compartilhamento das mídias vir acompanhado de dados pessoais das mulheres, como local onde      moram, estudam e trabalham, com a intenção marcada de identificá-las. Esses modos de violência por meio de mídias digitais têm consequências graves para elas. Evasão escolar, demissão e até mesmo suicídio são algumas delas.

Esses modos de violência se sobrepõe a outros e por isso é tão fundamental pensar nas interseccionalidades de gênero, raça, classe, geração, território, entre outras. Isso quer dizer que diferentes mulheres sofrerão de modo similar pelas desigualdades de gênero, mas podem experimentar outras formas de violência sobrepostas devido a suas condições de vida, e ter mais ou menos recursos para lidar com a situação.

Conhecemos meios de enfrentar essas violências. Processos educativos amplos, abraçados por diferentes instituições, são potentes na visibilização da questão e da construção de saberes coletivos. Cuidados na proteção da identidade e dos arquivos e da escolha de redes sociais para se comunicar, por exemplo, são informações que precisam ser divulgadas e publicizadas sem tabus, já que são de grande interesse, e ainda mais neste momento. Para as situações em que há violência, também é importante saber as medidas a serem tomadas, como registro de provas, denúncias, bem como de legislações e redes de apoio.

No atual contexto político, em que concepções como “ideologia de gênero” e o Projeto Escola sem Partido ganham força e cerceiam o debate sobre as questões aqui tratadas, cabe lembrar que a educação pela igualdade de gênero e pelo enfrentamento da violência é preconizada pelo artigo 8º da Lei Maria da Penha. Além disso, a educação sexual e o exercício pleno da sexualidade são direitos sexuais básicos, os quais não devemos nos intimidar ao promovê-los.

Neste momento em que as condições impostas pela pandemia de coronavírus nos convocam a pensar outros modos de vida e também de comunicar e educar, temos uma oportunidade: a de desenvolver uma educação em saúde e sexualidade, construindo maiores possibilidades, e sobretudo para as mulheres, de vivências da sexualidade que envolvam autonomia, liberdade, prazer, saúde e dignidade, livres de violências. E isso é uma questão de direitos.

* É doutoranda em saúde coletiva pela Fiocruz Minas e mestra em educação e cientista social pela UFMG.

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Kat J / Unsplash

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