Sobre crianças e aldeias saudáveis

Marco A. Correa

Uma das coisas que mais me deixa feliz é sorriso de criança; aquele sorriso de canto a canto da boca, principalmente se for seguido de uma gargalhada daquelas. É de tirar o fôlego, fico todo bobo. Ainda mais se for de criança preta, de pele escurinha igual a minha. Sorriso de criança preta é sinal que apesar de todo esforço e investimento, o projeto do colonizador não deu certo. Apesar de muita gente de terno e gravata mandar e desmandar, as crianças pretas tão lá rindo e se divertindo. Quase deboche. Criança saudável pra mim é criança chorando de felicidade. Cada crise de riso que vem das favelas, periferias e comunidades tradicionais deve fazer escorrer uma lágrima do rosto desses meninos-adultos mimados.

Por essas leituras que precisamos fazer pra descobrir os nossos tesouros, os que não foram saqueados, assimilados ou queimados, descobri a preciosidade que é o livreto Kindezi – a arte Kôngo de cuidar de crianças. Digo livreto somente pela pequena quantidade de páginas, pois a riqueza se assemelha a um diamante. Os autores Fu-Kiau e Lukondo-Wamba traduzem sagazmente o pensamento mágico do antigo Reino do Kongo – atual Angola e Congos -, na arte de cuidar de crianças. Quando me deparei pela primeira vez com o título me assustei, já pensei na longa discussão pedagógica do cuidar no contexto da educação infantil. Mas essa é a provocação proposital dos autores: o cuidar de crianças no antigo Reino do Kongo é diferente do babysitting do ocidente. Diferente da visão desvalorizada do trabalho com a infância no ocidente – desde a babá ao professor -, o Kindezi é uma prática primordial no processo formativo de qualquer sujeito. “Quem jamais cuidar de um bebê” – diz um provérbio Kôngo, “nunca entenderá a beleza da vida nem a de educar com amor”.

Acredito que os males que vivemos hoje em dia acontecem exatamente por nos distanciarmos de nossas crianças cada vez mais. Quando precisamos trabalhar pra produzir mais e mais, nos distanciamos de nossas crianças. Quando somos predatórios e competitivos, nos esquecemos de nossas crianças. Quando não damos risadas com nossos queridos, nós abandonamos a infância. A nossa própria infância, que nos fazia ser curiosos, corajosos e destemidos. Nossa sociedade se torna cada dia mais childfree, onde não há mais tempo para a infância, nem para a tradição do brincar. Não é à toa que um dos remédios para as doenças de nossa época – depressão e ansiedade – é a risada. Como nossas mães dizem, rir vai ser sempre o melhor remédio.

Para as tradições africanas a brincadeira é coisa séria. Reforçado pelo Kindezi de Fu-Kiau, mas sabido por toda a cultura popular brasileira, o brincar é uma forma de encantar a vida. Adoecemos quando nos esquecemos disso. Mas deveria ser conhecido e responsabilidade social viver as infâncias. Quando reconhecermos que somos responsáveis por qualquer infância, e que cuidar delas é um bem para o nosso bem viver podemos superar nossas crises.

Enquanto transpormos o nosso modelo de produtividade para o universo infantil, estamos minando a criatividade do brincar. Quando enfurnamos crianças em escolas que se assemelham com fábricas do saber, estamos mercantilizando o processo de aprendizagem. Quando privamos crianças de viver em um ambiente saudável e estimulante, estamos condicionando o nosso próprio futuro ao fracasso. “Uma comunidade sem juventude não tem futuro”, ou até mais, “o que a infância de uma geração é e será o que essa geração se torna em sua idade adulta. Uma infância arruinada é uma sociedade arruinada”.

Enquanto sofrermos pelos desmandos da gente que vem lá de cima, nessa sociedade de arranha céus, não poderemos cultuar a nossa vida circular, em roda, como nas sociedades tradicionais. Não é mero saudosismo romântico, nem desespero por redenção, mas é entender que enquanto a infância de crianças negras forem ceifadas, não poderemos nunca viver toda a potência que nossa vida permite.

Com os pés sujos na terra da aldeia, podemos resgatar a manha de aprender a brincar. A ciência já comprovou que o contato com a terra é saudável, quando vamos compreender a importância de cultivarmos um chão de escola que possa poder germinar crianças saudáveis? Não digo saudável no quesito de saúde, mas de bem estar, de prosperidade. Não encarando a infância como o por vir, o vir a ser, mas o que ela já é e já está sendo. A criança é a fagulha que temos agora para incendiar essasarcaicas instituições que ainda nos colonizam.

Enquanto escuto os últimos graves da voz de Milton Nascimento em sua esperada live, termino meus devaneios com versos do artista, nossa eterna criança.

Criar aldeias que formem crianças
Há um menino, há um moleque
Orando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão

(…)

Pois não posso, não devo
Não quero viver como toda essa gente insiste em viver
Não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal

(Bola de Meia, Bola de Gude – Milton Nascimento)


Imagem de destaque: Crianças ‘plantam’ cápsula do tempo em quilombo Pitanga dos Palmares/Caipora, em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador . Foto: Paula Froes/GOVBA https://zp-pdl.com/emergency-payday-loans.php https://zp-pdl.com/fast-and-easy-payday-loans-online.php https://zp-pdl.com/online-payday-loans-cash-advances.php

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