Sobre algumas palavras

Como repensar conhecidas palavras através de um  pequeno vocabulário algo transgressivo em dias de quarentena do corpo e de recolhimento do espírito

Carlos Rodrigues Brandão

Anomia – Anomia é mais ou menos algo ou alguém sem nome, sem “novem”, sem “nume”, sem “lume”. É o lugar social ou pessoal do sem-sentido.  É o não-lugar, ou o espaço que não chega a ser um lugar. Ou não chega a “lugar nenhum”.   É como quando uma pessoa pensa que sabe para onde ir, mas não conhece nem o caminho e nem desvenda os motivos de lá chegar.

 Autonomia – De algum modo é o oposto da anomia. O autônomo é o oposto do autômato. O autônomo é você, se você quiser ser autônomo. O autômato é o robô que faz o que deve, sem pensar no que faz. E sem sentir. Autônomo é quando você tem o “nomos”, o sentido-do-ser e a autonomia para, por sua conta e risco, pensar-o-ser que habita  dentro de você. O autômato é quando não se tem em-si-mesmo o que é propriamente seu, porque criado por um outro ser, como um sendo-em-mim.

Autômato é quem vive na anomia.  Autônomo é quem não apenas é-por-si, mas é quem busca com outras e nos outros: criar, estender, universalizar um crescendo de solidária autonomia-entre-nós.

Um outro nome mais político para autonomia é: democracia. Não essa em que vivemos, mas a que nós devemos lutar por construir e consolidar. Algo que quando inteiro, pleno e duradouro, torna a autonomia não um poder-em-mim-e-para-mim, mas uma partilha de um poder criado por seres livres, e em nome de uma crescente, até ser plena liberdade.

Autonomia é quando uma pessoa, ou um coletivo de pessoas: pensam o seu pensar; aprendem o seu saber; partilham o que sabem; traçam o seu destino; mudam as suas vidas; dizem as suas palavras; transformam o seu mundo e escrevem a sua história.

 Economia – Na Grécia Clássica havia duas palavras para o que hoje reunimos em uma só: economia.

Havia a palavra grega de que derivou propriamente economia. E ela queria significar o “cuidado com”, a “gestão da casa”. O “trato do que é de todos”, “a condução coletiva do bem comum”. “Casa”, aqui, é tomada no sentido de coletividade, comunidade, cidade: “óicos” (que em grego não teria acento, e da qual  deriva a palavra “ecumênico”, como…“o lugar de todos nós”).

E na Grécia havia uma outra palavra que adjetivalmente se aproxima de economia, mas que substantivamente é o seu oposto. Essa palavra (muito feia, e não por acaso) é crematrística.

Simplificando: se você pensa articular e fazer interagirem bens da natureza + o trabalho humano + a vida social + a construção social do mundo a partir do seu “lugar concreto de vida”, com o propósito de gerir dons, bens, ideias, projetos e ações em nome do bem-comum, então você é um ou uma economista. Você é um praticante da economia, como “gestão-do-que-é-nosso, do que existe em comum, em comunidade”. Nesta vocação você pode ser até mesmo um “empreendedor”, no sentido “óicos” e “nomos” desta palavra… de que eu confesso que nunca gostei muito.

Mas se você emprega o seu “espírito empreendedor” para esquecer os dons-entre-nós, e pensar apenas nos ganhos-para-mim, então, eu lamento. Pois você pode até ficar rico, e talvez criar uma “fundação benemérita” com o seu nome. Mas você é um moderno praticante da crematrística. Uma palavra para a qual o equivalente moderno poderia muito bem ser: “capitalista”. Pois o capitalismo (que não existia entre os gregos clássicos) é a lógica e a prática moderna da crematrística.

Quando a economia se transforma em crematrística isso pode ser extremamente danoso para a ecologia, que nos espera logo adiante.

Ecologia – ecologia é o saber da economia da natureza. E a natureza não é o que “está lá onde eu não estou”. A natureza é você, assim como é o seu cachorro, o arroz com feijão que você comeu (ou devia ter comido) ontem. É a árvore na calçada de sua rua. É a floresta onde você não entra porque tem medo de cobras (que são também natureza). É o ar que você respira. São as terras (ainda) cobertas de florestas nos recantos do Brasil, lá (ou ali) onde o agronegócio devasta a terra da Terra, pensando (ou nos querendo fazer pensar) que está “semeando o progresso”. Natureza é o todo do suave e belo Planeta Terra em que você vive.  É a Vida que habita a Terra e é a Terra, como um Ser-Vivo, e não apenas um lugar que abriga a Vida. E… vida é até o Corona Vírus – 19.

Ecologia também vem do grego. E quer dizer originalmente “o-logos-do-óico”. Isto é, o conhecimento (logos) destinado a uma boa gestão da casa (óico) (que em grego não deve também ter acento). Qual casa? A sua. A minha. A nossa. O “nosso mundo”… o único que possuímos por agora e, imagino e desejo, por muito tempo.

Epidemia – A epidemia é uma pandemia em ponto menor. Por exemplo: houve (ou há ainda) uma “epidemia do cólera” em algumas regiões da África. Mas há uma pandemia, como a do “corona vírus” em todo o Mundo (ou quase todo). A epidemia é o nome de doenças que afetam outros que não-eu, e que ganha este nome quando pode me afetar também. É quando uma doença começa a virar notícia.

É muito estranho que males que roubam a vida de crianças, de mulheres, de homens idosos em uma proporção muito maior do que a “dengue”, por exemplo, não recebam um nome clínico qualquer. E apenas raramente apareçam nos noticiários, a não ser em programa especiais domingo de manhã, ou depois da meia-noite.

Às vezes eles são chamados “flagelos” como, por exemplo: “a fome no mundo”, “a diarreia em crianças”, as chamadas (e nunca controladas ou erradicadas) “doença endêmicas”, como a varíola do passado ou a malária de agora. Enfim, as enfermidades de sempre e, se possível, “dos outros”: “os sem-terra”, os “desterrados”; os “sem-teto”, os “moradores na rua”; os “exilados”, os “sem pátria”; os “excluídos”, as e os sem “trabalho fixo e sem “carteira assinada”.

A imensa e crescente fração majoritária de uma humanidade posta à margem, ou excluída do mercado do capital. Logo, excluídos da fração da humanidade “que conta nas contas do mercado”, e, portanto, pode estar presente e atuante na vida e na sociedade. E até podem ter um “plano de saúde”… como eu.

 Pandemia – pandemia é uma epidemia em ponto maior. Com maiores poderes do que a epidemia, a pandemia existe quando aquilo que deveria ameaçar somente “os outros”… distantes, pode me ameaçar também, aqui onde eu estou. Assim, diferentes na geografia, na sociologia elas se equivalem!

Estranho que quando se espalhou pelo mundo a “gripe espanhola” (que nada tinha a ver com a Espanha) um ano depois que a minha mãe nasceu em 1917, e, São José do Norte, uma cidadezinha entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico, no quase Extremo-Sul do Brasil, ela não se chamou pandemia, embora tenha acabado com a vida de cerca de 50 milhões de pessoas. Chamaram de “epidemia”. Acho que a palavra “pandemia” não tenha sido ainda inventada, porque o mundo ainda não era “uma aldeia global”.

pandemia que vivemos agora, e que nos obriga a um severo “isolamento social” (saudades de abraços de verdade, corpo a corpo!) é um chamado a que descubramos de novo o que já conhecíamos: somos extremamente frágeis!!! A pessoa que somos, ou a quem amamos, pode ser “levada embora da vida” por seres que mal chegaram, que eram desconhecidos há alguns meses, que são invisíveis e fatalmente mortais.

É esperado universalmente, entre os que desejam que assim seja; entre os que temem que seja assim; e também entre os que lutam para que assim não seja, que epidemias e pandemias possam ser “naturalmente” seletivas. Algo que esconda que elas acabem copiando social e economicamente o que a sociedade desigual faz há milênios. Que elas façam mal ou matem mais gente ao Sul do Equador do que ao Norte. No Oriente do que no Ocidente. Na África e no Afeganistão do que na Austrália e na Áustria. Na favela da Rocinha, do que na Rua Cedro, logo embaixo dela, na Gávea, onde morei confortavelmente durante 16 anos.

Vivemos epidemias e pandemias perenes e, em alguns recantos do nosso Mundo e em algumas épocas de nossa História humana (e, não raro, tão desumana) assistimos de longe pandemias-de-outros, longas, terríveis, esquecidas.(veja  o anexo ao final, depois deste sinal *)

Sinergia – Sinergia rima com simpatia. Porque ambas começam com o mesmo prefixo “sin”, ou “sim”, como em sinfonia, quando muitos tocam juntos uma mesma música. Em seguida do “sin”, que traduz o que sendo seu é também meu,  a palavra  sinergia se completa com a meia-palavra ergia, derivada de energia.  Juntas em sinergia elas querem sugerir uma energia-de-vida, de élan vital de desejo de com-você com-viver, e partilhar a Vida, através da energia que cria em você e em mim uma força dobrada de um amoroso, ativo e assertivo entre-nós.

Sinergias que se alarguem – e elas podem ser infinitas – e abranjam e abracem incontáveis pessoas, podem mudá-las para seres melhores. E são (somos) elas aquelas que, juntas, podem transformar o mundo em direção pan-sinergia de “um outro mundo possível”.

 Pedagogia – Pedagogia também vem do grego (e como viver e conviver sem o que nos veio da Grécia?). Pedagogia fez o pedagogo, seja ele uma professora “de chão da escola”, ou não, desde que em qualquer campo da vida e da sociedade em que viva e trabalhe, seja uma também… educadora.

Pedagogia vem de uma bela e sonora palavra grega: paidéia (que eu acho que escrita em grego não tem acento algum). Esta palavra é meio difícil de traduzir para qualquer língua. Porque o seu sentido é muito amplo e profundo.

Assim, naquele que eu considero o mais belo e profundo livro sobre a educação (e também talvez um dos mais grossos – no bom sentido da palavra “grosso” – porque tem mais de 1500 páginas, imagine!), escrito pelo pensador e educador alemão Werner Jaeger, e que recebeu este nome: Paidéia – a formação do homem grego, a palavra paidéia não significa apenas educação, o ato de educar. Significa formação. Levar alguém à paidéia significa formar uma pessoa em sua mais inteira, completa e perfeita integridade. Mesmo lembrando com Paulo Freire que nós, os humanos, somos seres inacabado, mas sempre “acabáveis” e imperfeitos, mas sempre aperfeiçoáveis.

Em tempos em que cada vez uma “educação funcional” empenha-se em apenas instrumentalizar o futuro competente-competitivo para “vencer no mercado”, ao invés de formar o consciente-cooperativo, para criar com outras pessoas um mundo-humano em que todos vivam, é urgente voltarmos à esta ideia matriz da educação.

A respeito dos gregos há um belo momento em Michel Foucault, em que ele diz (ou escreve): “se uma vela pode ser uma obra de arte, porque não uma pessoa humana?” Então é preciso a Paidéia, destinada a partilhar saberes dialógicos e solidários, para que pessoas venham a ser a obra-de-arte-de-si-mesmas. E também habitantes de um mundo que seja a realização da obra de nós todas… e todos.

Nota: devo com honestidade confessar que há anos folheio, compulso, leio capítulos e emprego passagens de Paidéia – a formação do homem grego em livros meus, como A Flauta de Prata – escritos sobre o saber e a educação, por exemplo. Mas  eu também nunca li Paidéia inteiro, “de cabo a rabo”. No entanto juro que estou aproveitando esses dias de recolhimento forçado para, aos 80 anos, ler o Paidéia inteiro, e espero chegar ao fim do livro antes de chegar ao fim de mim-mesmo.

Utopia – utopia é o lugar-que-está-lá porque (ainda) não-está-aqui. O lugar-que-está-lá é uma topia = um “topos”, um “topoi” (os gregos de novo!) que existe – como o Brasil destes tempos – mas que é-como-não-devia-ser.  Daí o sentido e o dever solidário de lutarmos por transformar o “topos-não-utópico em que vivemos – e não apenas aqui no Brasil, mas na América Latina, no Ocidente, em todo o Mundo – em uma possível e realizável utopia.  Creio que foi Jean-Yves Lelloup quem disse: “a utopia não é o irrealizável, é o não realizado”… ainda.

O que nos deve lembrar a estranha e desafiadora expressão de Paulo Freire: ousar trabalhar em nome do “inédito viável”.  Que tal, a partir de hoje… mesmo em quarentena?

 Florestesia – Não sei se esta palavra existe. Se não existe é bom que comece a existir. Pois hoje eu saí de casa (com máscara, etc.) para caminhar um pouco. Na calçada da rua da esquina de repente olhei o chão com cuidado. Estava coalhado de flores entre lilases e roxas. Ah! Olhei então para a copa da árvore, e ela estava repleta de flores do Ipê Roxo. Maravilha das maravilhas! Em plena quarentena-de-pandemia, uma florestesia de repente, de um dia para outro invadiu uma rua de meu bairro. Invadiu a minha vida! E quando eu cheguei em casa, a menos de doze passos do “Pé de Ipê Roxo”, era um ser florido por dentro.

Saudades de Rubem Alves, amoroso dos Ipês como eu.

Poesia – poesia é o que você escreve quando não escreve prosa. Em tempos de pandemia deixe de lado a prosa de sempre, e fuja do prosaico em nome do poético, ou mesmo do poiético (a poesia de você-mesma), e tente ler, pensar, viver e até escrever… poesia.

Como esta que eu rabisquei quando acordei hoje, antes de começar a re-escrever o que faltava deste “vocabulário transgressivo”, que eu espero que você esteja lendo agora… mesmo que aos pedaços.

De longe, amigo,

desde a janela eu te vejo

e vejo o teu rosto

distante, na janela.

 

E sei que de lá me vês:

Um quem? Um ser?

Um rosto? Um corpo?

Um vulto, um alguém?

Ou, quem sabe?

uma figura acaso

pintada numa tela

e à espera do que?

de quem? Um o que?

Uma miragem lá. 

Um rabisco na paisagem?

Um mero traço?

 Não sei como de lá me vês.

Mas de uma coisa, amigo

que de longe vejo, eu sei:

tenho saudades de ti

que mal conheço.

E se longe eu te aceno

de perto, no afeto,

amigo, eu te abraço.

Profecia – “Não haverá escapatória enquanto não tiver surgido uma nova consciência do homem, que o desperte, e com as forças mais primitivas de sua alma o impeça de fazer confusão entre o condicionado e o absoluto. E perceber o que é aparência e engano, e corrigi-lo”.

Martin Buber

Eclipse de Deus – considerações sobre a relação entre a religião e a filosofia

 Campinas,  14 de maio de 2020 em quarentena, ou em recolhimento.


Imagem de destaque: Luiz Carlos Castello Branco Rena

 

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