Sobre a “vida acadêmica”

Eduarda Moro

Por que dizemos vida acadêmica quando nos referimos ao tempo dedicado ao pensamento? Há uma vida dicotômica? Há uma vida que pensa e outra que não?

Tenho pensado nisso nos últimos tempos. E todo o tempo pensado resultou no texto que se segue…

Até dias atrás trabalhava das 8h00 ao 12h00 e da 13h30 às 18h00. Quando iniciaram as aulas a empolgação que sentia por ter ingressado em um programa de doutorado foi sendo furtada pela angústia do – que eu considerava ser – meu eu-trabalhadora. Não demorou para que eu aderisse ao discurso dos que dizem que “trabalhar e estudar ao mesmo tempo é difícil”.

Passou uma semana e eu – tendo a possibilidade de escolher – escolhi “apenas estudar”, como disse ao meu pai, contando sobre a decisão que havia tomado.

O discurso passou batido e de modo algum pensei sobre o que havia falado e o quanto aquilo significava.

Após rescindir o contrato com a empresa na qual trabalhava deparei-me com a dificuldade de assimilar minha nova profissão e assumi-la, de fato. Ser pesquisadora sempre foi meu desejo, mas mesmo agora, quando finalmente sou, é ainda difícil internalizar a ideia de que meu eu-pesquisadora é, na verdade, meu eu-trabalhadora, também.

Sendo o antigo trabalho das 8h00 ao 12h00 e da 13h30 às 18h00 o único remunerado, mesmo quando a pesquisa tomava boa parte do meu dia – e as leituras e estudos eram desenvolvidos durante o próprio expediente –, era ainda o trabalho da carteira assinada o qual me fazia afirmar ser uma trabalhadora.

Em 20 de março deste ano, em meio a uma pandemia, o Ministro da Educação, Abraham Weintraub, publica em sua conta oficial do Twitter: “Há um ano ressaltei as escolhas ERRADAS do PT! Hoje o Japão tem hospitais, médicos e enfermeiros para tratar seus doentes. O Brasil tem estádios de futebol, antropólogos e filósofos!”.

Li. Compartilhei com alguns colegas. E então entrei em um processo contínuo de me pôr a pensar sobre as contrariedades de me perceber como trabalhadora ao assumir a pesquisa como labor.

É preciso abrir um parêntese aqui. Importante apontar que sou graduada em psicologia, possuo mestrado em educação e agora curso doutorado em ciências humanas. Um conglomerado de profissões malquistas pelo atual governo e pelo próprio Weintraub, as quais estabelecem uma conexão direta com a custosa tarefa de introjeção da pesquisa como minha atividade laboral.

Por quê?

A importante consideração a se fazer diante do comentário de Weintraub é a errônea concepção acerca da relevância dos trabalhadores das ciências humanas e sociais, como se destes profissionais não pudessem surgir propostas e ideias capazes de potencializar as ações do governo, inclusive agora, durante a pandemia. O ministro tem demonstrado por meio de suas colocações referentes a crise do coronavírus, a intenção de, em momento mais inoportuno possível, reafirmar um projeto educacional que suprima as ciências humanas e sociais dos currículos escolares e do próprio investimento governamental. Contudo, a fala de Weintraub ressoa muitas outras vozes, que em tom polifônico reverberam os sentidos atribuídos, primeiro, à própria ciência e, segundo, à escolha da pesquisa, ou, da vida acadêmica enquanto profissão.

Fazendo uma aproximação do que Weintraub aponta à discussão levantada por Byung-chul Han em Sociedade do cansaço (Vozes, 2015), a desvalorização das ciências, sobretudo das ciências humanas e sociais, revela uma visão de mundo no qual quem pensa é inimigo a ser combatido. Deste modo, o sujeito que escolhe viver do pensar é alguém que possui modo de existência contrária ao modus operandi e, portanto, representa uma ameaça ao Estado, podendo ser tão danosa quanto um vírus.

Como afirmam Deleuze e Parnet (Diálogos, Escuta, 1998), “[…] a verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a procurar o que é verdadeiro”. Então, “[…] é preciso forçar o pensamento a pensá-lo”. Partindo desta compreensão de que o ato do pensar, do refletir e problematizar não é função automática do humano, fazer do pensamento atividade laboral parece ser uma dupla ameaça. Cabe rememorar Hannah Arendt (A condição humana, Forense Universitária, 2005), para a qual o pensamento é a atividade que nos conduz a uma vita activa. É o pensamento que torna possível a transformação, caso contrário, reduzimos a potência de ser a uma constante reprodução.

Não é apenas a desvalorização monetária do sujeito-pesquisador que nos leva a descreditar a pesquisa como profissão. A necessidade de criar vidas dicotômicas e categorizações frente a uma vida que precisa ser nomeada de acadêmica para então ganhar um tom de seriedade e, uma certificação e validação laboral, tem conexão direta com o viés inutilitarista dado ao pensamento humano no contemporâneo. Sendo, lembra Pierre Bourdieu, (Um pensador livre: “Não me pergunte quem sou eu”, Revista Tempo Social, 1998), “[…] o conhecimento antropológico […] sem dúvida a única chance que temos de nos livrar do sono antropológico”, estar desperto e produzindo ciência em tempos sombrios como este é prática política e, mais do que isso, ato de resistência.

Não há para mim uma vida acadêmica. Há, no entanto, um processo de tornar-se consciente da própria vida, de seus poderes, redes e relações, por meio do trabalho da pesquisa.

O pensamento é cartográfico, não acaba, não conclui. Há muito o que ser transformado até que tiremos o do “eu estudo”. Há primeiro que introjetar a noção do pensamento como tarefa essencial da vida, para que então não exista uma vida acadêmica, exista apenas uma vida, mas uma vida que pensa.

Em tempos nos quais é preciso resistir para poder pensar, desejo que toda vida possa ser ativa de pensamento, de colocar o pensamento a pensar, seja ela acadêmica ou não…

Que continuemos, pensando e resistindo.

 

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª edição Rio de janeiro: forense Universitária, 2005.

BOURDIEU, Pierre. Um pensador livre: “Não me pergunte quem sou eu”. Tempo soc., São Paulo , v. 25, n. 1, p. 169-175, 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702013000100009&lng=en&nrm=iso.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.

1 Como afirmam Deleuze e Parnet (1998, p. 15), “[…] a verdade     depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a            procurar o que é verdadeiro”. Então, “[…] é preciso forçar      o pensamento a pensá-lo” (p. 46).


Imagem de destaque: Rodion Kutsaev / Unsplash

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *