Sobre a boniteza de ser professor

Júlio Emílio Diniz Pereira*

Eu não me lembro exatamente quando eu disse para os meus pais que eu queria ser professor da educação básica. Porém, eu me recordo bem as expressões de preocupação em seus rostos quando eu lhes disse isso a primeira vez. Eu ainda era criança e não era capaz de compreender o motivo daquela preocupação. E todas as vezes que eu tocava no assunto, eles desconversavam. À medida que eu crescia e que a certeza em ser professor da educação básica em mim aumentava, a minha mãe resolveu usar uma estratégia diferente: tentar me convencer que eu podia fazer Medicina – o sonho dela¹ – e “dar aulas” no ensino superior. O fato de ter sido um estudante que tirava boas notas e que estava sempre entre os melhores alunos da turma² só fazia aumentar a preocupação dos meus pais em relação à minha escolha profissional. Na opinião deles, seria um desperdício enorme eu me tornar um professor da educação básica. Para eles, eu deveria fazer “algo melhor”: um curso de Medicina, de Direito ou de Engenharia. Aliás, este era um sentimento compartilhado por várias outras pessoas que me conheciam: avôs, avós, tios, tias – alguns deles/as professores/as da educação básica! – eaté mesmo entre os meus próprios professores do colégio!

Paulo Freire disse certa vez que estranhava este comportamento das classes mais abastadas da sociedade brasileira: exigiam que seus filhos tivessem bons professores, mas não queriam que seus filhos se tornassem professores. Pois, isto era exatamente o que se passava com a minha família.

Quando, finalmente, chegou a hora de escolher um curso para prestar o vestibular, a estratégia da minha mãe deu certo: optei por Medicina. Apesar de ter me esforçado bastante para ser aprovado no vestibular, 2,5 pontos (dois pontos e meio!) me separaram da área da Saúde para sempre. Fiquei em quinto excedente. Os quatro candidatos colocados à minha frente foram chamados. Parafraseando Cazuza, parece que o meu destino estava mesmo traçado na maternidade.

No ano seguinte, eu resolvi enfrentar os meus pais e tomei a decisão de prestar o vestibular para um curso que oferecesse a modalidade de Licenciatura. Estava determinado: eu queria ser professor da educação básica!

Eu tinha certeza que queria ser professor da educação básica, mas não estava seguro professor “de quê” eu gostaria de ser. À princípio, eu gostava de todas as matérias da escola. Saía bem em todas elas. Usei, então, o seguinte raciocínio para escolher o curso: como eu havia me preparado, no ano anterior, para prestar o vestibular para Medicina, eu aproveitaria parte dessa preparação para prestar o vestibular para um curso de uma área afim.Optei por Ciências Biológicas. Resultado: fui aprovado em 1º lugar!³

Na época, o vestibular para o curso de Ciências Biológicasera único para ambas asmodalidades: Bacharelado e Licenciatura.A opção entre uma ou outra modalidade deveria ser feita apenas ao final do quinto semestre – sem ser assumido formalmente, este era o tempo que o Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB/UFMG) julgava suficiente para convencer alguém com o perfil parecido com o meu a optar pelo Bacharelado. Você passava cinco semestres no ICB/UFMG ouvindo comentários positivos sobre o Bacharelado e críticas à Licenciatura, para, então, optar “livremente” entre uma ou outra modalidade. Aquelas pessoas que, mesmo assim, insistissem em fazer Licenciatura, eram rotuladas como incapazes de seguir a carreira acadêmica. A lógica velada era a seguinte: iriam para a Licenciatura apenas os que “não deram certo” no Bacharelado. O destino destes(assumido como uma punição!) seria mesmo a escola básica!

Pois, o 1º lugar do vestibular daquele ano entrou para esse curso já decidido sobre qual modalidade fazer:a Licenciatura!E não foi convencido do contrário depois de passar dois anos e meio (olha o 2,5 aí de novo!) no ICB/UFMG. Logo que iniciei o curso, percebi que a opção consciente do 1º colocado no vestibular pela Licenciatura foirecebida como uma verdadeira heresiadentro do ICB. Eu fui o único entre os meus colegas de turma que entrei para o curso com a certeza de que queria ser professor da educação básica. Muitos diziam que optaram pelo curso de Ciências Biológicas para fazer Engenharia Genética –era o que estava na moda na época e o que dava mais status no curso. Ouvi dos professores desse curso, desde o encontro de recepção dos calouros, que a missão do ICB/UFMG era formar cientistas (ou seja, para eles, o ICB não teria compromisso com a formação de professores da educação básica. “Isto é lá com a Faculdade de Educação!”, repetiam insistentemente).

Como eu estava convicto de que queria ser professor da educação básica, comecei,desde o segundo semestre do curso, a “dar aulas”. Entrei para o maior programa de extensão da UFMG: o Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos (PROEJA) em que os professores eram alunos dos diversos cursos de Licenciatura da Universidade. Aqui eu tive importantes lições sobre o que é ser professor, o que é ensinar, o que é uma aula. Aprendi que escola é um projeto em permanente construção; que ela tem que ter a cara dos sujeitos que dela participam: no nosso caso, jovens e adultos trabalhadores em processo de reescolarização. Aprendi que a docência é sempre coletiva; construímos coletivamente sobre o que e como ensinar, tomamos decisões conjuntas sobre o que fazer e também avaliamos coletivamente. Aprendi que os estudantes não são sujeitos passivos no processo de ensino-aprendizagem. Pelo contrário! Os/As meus/minhas alunos/as do PROEJA me ensinaram, por meio das estórias que insistiam em contar em sala de aula, a vê-los como seres humanos de direitos, a nota-los como sujeitosde conhecimento (sujeitos cognoscentes), a enxerga-losem suas especificidades econômicas e socioculturais, a inseri-los ativamente nos processos de ensino-aprendizagem e, talvez, o mais importante: eles me ensinaram a boniteza de ser professor.

Não há porque eu descrever esse processo, se Paulo Freire o fez tão bem por meio de sua extraordinária capacidade de síntese e de sua incomparável sensibilidade. Eu prefiro, obviamente, cita-lo:

“A prática educativa como processo do conhecimento e não como processo de transmissão do conhecimento é uma coisa linda, porque enquanto o educando começa a conhecer o objeto proposto, o educador reconhece o objeto no processo de conhecimento que o educando faz, quer dizer, no fundo é um ciclo de conhecer, que inclusive confirma o conhecimento. Esse processo é de uma indiscutível boniteza” (FREIRE, 2004, p. 175).

A partir do sexto semestre do curso, passei a frequentar a Faculdade de Educação (FaE) da UFMG na condição de aluno da Licenciatura. Chegara a hora de fazer as tão aguardadas disciplinas pedagógicas do meu curso! A minha identificação com aquele espaço foi imediata. Tratava-se de um prédio de um único piso – diferente do ICB que era verticalizado e fisicamente hierarquizado (enquanto a Bioquímica ocupava um enorme espaço do quarto andar, a Botânica se espremia em uma única ala do primeiro piso!). O prédio da FaE, apesar de provisório e pequeno, era claro, naturalmente iluminado, quente – não apenas em razão das altas temperaturasna primavera e no verão, mas também graças ao calor humano que fazia daquele lugar um espaço humanizante; humanizado. O ICB, ao contrário, era sombrio (não havia aproveitamento da luz solar), frio (em qualquer época do ano) e, principalmente, frio nas relações humanas.

Formar professores da educação básica não podia mesmo ser a missão daquele prédio frio, sombrio e verticalizado. Não seria ali que alguém aprenderia sobre a boniteza de ser professor. Isto deveria acontecer em um espaço humano, humanizado, culturalmente diverso, naturalmente iluminado (ecologicamente sustentável) e horizontalizado (inclusive, nas relações humanas!). Ao escrever sobre o que ele chamou de “educação democrática”, Paulo Freire, mais uma vez, explicita a boniteza do processo educacional:

“Quando nós pensamos em uma situação educacional nós talvez possamos descobrir que em toda a situação educacional, além dos dois lados, dos dois polos, estudantes e professores, há um componente mediador, um objeto de conhecimento, a ser ensinado pelo professor e a ser aprendido pelos estudantes. Esta relação é, para mim, mais bonita quando o professor tenta ensinar o objeto, a que nós podemos chamar de conteúdos do programa, de uma forma democrática. Neste caso, o professor faz um esforço sincero para ensinar o objeto que ele ou ela supostamente já conhece e os estudantes fazem um esforço sincero para aprender o objeto que eles ainda não conhecem. Entretanto, o fato de que o professor supostamente sabe e que o estudante supostamente não sabe não impede o professor de aprender durante o processo de ensinar e o estudante de ensinar o processo de aprender. A boniteza do processo é exatamente esta possibilidade de reaprender, de trocar. Esta é a essência da educação democrática” (FREIRE, 2009, p. 26; grifo meu).

Logo depois que concluí a Licenciatura em Ciências Biológicas, comecei a lecionar no ensino fundamental e médio de escolas públicas e particulares de Belo Horizonte. Ali, a boniteza de ser professor se confirmava em algumas situações e em alguns momentos, principalmente, aqueles em que eu estava em contato direto com os meus alunos pré-adolescentes e adolescentes.Porém, também fui apresentado a algumas “feiuras” do magistério que eu ainda não conhecia.

Era muito difícil para mim permanecer na sala dos professores durante o recreio, por exemplo. Ouvia indignado comentários negativos dos meus colegas sobre os alunos e que eu definitivamente não concordava com eles. Aprendi com a minha experiência no PROEJA a valorizar as potencialidades dos nossos alunos em vez de trabalhar com a lógica do “déficit”; aprendi também por meio daquela experiência que todos os seres humanos, independente da sua condição econômica, social, cultural, física ou mental, são capazes de aprender. Eu preferia, então, passar o recreio com os meus alunos no pátio da escola a ficar ali escutando aquelas afirmações pejorativas e, muitas vezes, preconceituosas sobre os alunos. E o pior, aquela minha atitude era considerada “antiprofissional” por alguns dos meus colegas.Além disso, o intervalo e a sala dos professores tinham se transformado em um verdadeiro mercado persa. Vendia-se de tudo! Calcinhas, sutiãs, cosméticos etc. Os meus colegas justificavam aquilo dizendo que precisavam complementar a renda, pois, o salário de professor era muito baixo. Ao ouvir aquilo, a primeira pergunta que fiz aos meus colegas foi a seguinte: “Mas, vocês não são sindicalizados? Por que não nos organizamos e lutamos coletivamente para a melhoria das nossas condições de trabalho e salariais?” Alguns deles, depois de testemunharem tantos anos de falta de compromisso dos nossos governantes com a educação e de verem as condições laborais e de salário se deteriorarem ao longo do tempo, olhavam para mim com um olhar de desesperança e de desilusão.

Eu estou convencido de que o capitalismo explora o compromisso dos professores com os nossos alunos – afinal, são eles que realmente nos importa! –, o idealismo desses profissionais em querer contribuir para a construção de um mundo melhor eos valores morais de muitos deles (que não coincidem com os valores dominantes das sociedades capitalistas: o materialismo,o consumismo e a ostentação) para pagá-los indignamente. Aliás, o capitalismo, que também é essencialmente machista, explora o fato de o magistério ser hoje exercido majoritariamente por mulheres para pagá-las indignamente4. O problema é que, infelizmente, muitas/os professoras/es competentes e comprometidas/os estão deixando o magistério em razão dessas condições de trabalho e salariais indignas.

Outra coisa que me incomodava bastante no magistério era o excesso de burocracia e o aumento gradativo do controle sobre o trabalho docente.A supervisora da escola me obrigava a fazer coisas que nem ela mesma sabia justificar o porquê daquilo. Por que desconfiavam tanto da gente? Quando teríamos políticas públicas que partissem de uma relação de confiança com os professores em vez de tamanha falta de credibilidade?

O fato de o magistério poder ser exercido por pessoas que não têm compromisso com a profissão, as más condições laborais e de salário, bem como o excesso de burocracia e de controle sobre o trabalho docente são elementos que contribuem para a docência perder a sua boniteza intrínseca e essencial. Mais uma vez, me identifico com as palavras de Paulo Freire:

“Sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza. Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo, descuidado, corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz, que cansa mas não desiste. Boniteza que se esvai de minha prática se, cheio de mim mesmo, arrogante e desdenhoso dos alunos, não canso de me admirar” (FREIRE, 2011, p. 145; grifos meus).

Todos os questionamentos colecionados ao longo da minha graduação e durante os anos iniciais da minha experiência docente me levaram precocemente para o mestrado em Educação, na FaE/UFMG. No mesmo ano que eu defendi a minha dissertação, eu prestei o concurso para professor efetivo e me tornei docente da instituição que eu havia me identificado tanto com ela ainda enquanto aluno da Licenciatura. Eu havia me tornado, muito precocemente, um formador de professores! A partir de então, a minha responsabilidade era formar novos professores da educação básica5. E o meu desafio passava a ser: mostrar para os meus alunos de Licenciatura a boniteza de ser professor da educação básica sem, obviamente, esconder as “feiuras” que às vezes fazem a profissão perder um pouco do seu brilho.

Em 2018, completei 25 anos que leciono na Faculdade de Educação da UFMG. Hoje, os meus estudantes de Licenciatura já fazem estágio com professores da educação básica que foram meus alunos na Universidade!E esta é sem dúvida outra boniteza do magistério: contribuir com a formação humana de seres humanos e, ao nos tornarmos melhores seres humanos, contribuir com a construção de um mundo melhor – mais justo, mais humano e mais fraterno. Ou, para terminar, como bem escreveu Paulo Freire:

“…quanto melhor a educação trabalhar os indivíduos, quanto melhor fizer seu coração um coração sadio, amoroso, tanto mais o indivíduo, cheio de boniteza, fará o mundo feio virar bonito” (FREIRE, 2007, p. 36; grifo meu).


REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Tolerância. São Paulo: UNESP, 2004.

FREIRE, Paulo. Política e Educação. Indaiatuba: Vila das Letras, 2007.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Solidariedade. Indaiatuba: Vila das Letras, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

 

¹Minha mãe queria, na verdade, que eu me tornasse um neurocirurgião. Porém, em razão da minha completa falta de destreza nas mãos, eu brincava com ela que eu poderia, para satisfazê-la, fazer Geologia e me especializar em pedras nos rins (sic).

²Além disso, eu sempre fui um aluno bastante crítico e questionador ao longo da minha trajetória escolar – queria saber o porquê de fazer certas atividades na sala de aula, o porquê de aprender certos conteúdos, me indignava com decisões autoritárias tomadas pela direção da escola etc. – o que me fez deixar o ensino médio com os rótulos de “aluno problema” e “líder negativo”. Obviamente, eu nunca aceitei esses rótulos.

³Com a pontuação que eu obtive nesse novo concurso, eu passaria em 35º lugar no curso de Medicina da UFMG naquele ano. Meus pais não se opuseram (explicitamente) à minha opção e me apoiaram durante a graduação – inclusive com a compra de livros caros que o curso demandava – mas, no fundo, mantinham as esperanças de eu pedir transferência para Medicina nos anos subsequentes.

4Paulo Maluf, quando era governador de São Paulo nomeado pelo governo militar, disse, em 1981, uma frase infeliz e extremamente sexista: “Professora não é mal paga, é mal casada”. Essa afirmação, mesmo que não repetida em público por muitos governantes atuais, provavelmente continua a povoar a mente de muitos deles por estes não se comprometerem com políticas de melhoria salarial das/dos docentes. Ignorantes, mal sabem eles que uma boa parte das professoras da educação básica no Brasil são chefes-arrimo de família.

5Quando me tornei formador de professores, eu tinha apenas cinco anos de experiência como professor da educação básica. Sempre achei muito pouco. Porém, em razão da diversidade de experiências docentes e da intensidade com que eu vivi essas experiências, eu costumo parafrasear Juscelino Kubitscheck e dizer que estes foram, na verdade, “cinquenta anos em cinco”.

*Doutor em Educação pela Universidade do Estado de Wisconsin, em Madison, nos Estados Unidos (2004), e Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq (Nível 2).

Imagem de destaque: Katie Phillips / Pixabay

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