Romão Pede Opção

Ivane Laurete Perotti

Se tem algo em meu corpo que acho desnecessário é o pescoço. Não gosto desse hiato entre a cabeça e o tronco. Lembra uma ponte móvel sem barras de segurança. Uma corda que balança com o peso dividido. Um intervalo entre partes que andam em separado. Eu ando. Na cabeça eu carrego o mundo torto. No corpo, a tortura do mundo. Minha cabeça gira. Meu corpo não sai do lugar.

          _ Ei, moço. Dá um trocado…

 A fome é bagulho na vitrine. Mata por dentro e por fora. Esfola a gente como se fosse amolador de faca. Nasci nas ruas. Meu berço, as calçadas. Virei paisagem. Como um intervalo no esboço do criador. O pescoço, meu problema. Desejava arrancá-lo. Incomoda como incomodam as interrogações que eu faço. Bolado, eu penso coisas misturadas. Culpo o pescoço. Quando penso, o pescoço carrega pensamentos para a barriga. Da barriga, para as outras partes. E essas partes falam entre si. Falam coisas que voltam à cabeça. O tempo conta contra. Muda as contas, eu não crescerei. Sei disso. Criança de rua morre onde nasce. Assim transcorria a minha vida de paisagem: um vivo-morto.

Meio vivo, meio morto, eu seguia meninos mais velhos, em pequenos grupos para não chamar os homi dos berros. Mas cansado, zonzo de fomes, cheiros, feridas e fedores, fiquei por dias na mesma calçada. Perto de uma praça, quase esquina com uma escola, bem no centro da cidade. Pedia e adormecia. Adormecia e pedia. A esmola que eu oferecia voltava esvaziada de olhares. Até que passei a acordar com um lanche ao lado de minha cabeça. Um dia. Dois. No terceiro, me dei conta do horário. A curiosidade atravessou o frio. Não que ele me incomodasse. Estava congelado por dentro. O pescoço continuava levando as nuvens de minha cabeça para o resto do corpo. Eu todo era uma nuvem encardida. A camiseta e a bermuda que eu vestia tinham a cor do barro seco. Perdera o cobertor rasgado. Descalço, decidi sentar-me para ver o que se passava. Não demorou muito. Uma senhora que sai da escola para diante de mim:

             _ Olá! Está acordado! Que bom! Aceita um lanche?

Outro lanche. Água mineral com gás. Ela explica:

_ Trouxe o lanche para eu comer. Mas posso almoçar em casa. Como você está?

Não respondi. Recebi o lanche. Coloquei no chão.

_ Isso é para você. Penso que irá gostar. É um livro lindo! É seu. Tchau!

Ela se foi. Eu nada disse. O presente não pertencia às minhas mãos. Mas o olhei, mesmo assim. Olhei, de trás para a frente. De frente para trás. Olhei. Olhei. Só conhecia as letras iniciais do meu nome. Era um livro para crianças, pensei. Tudo o que eu não era. Fiz do livro travesseiro por conforto e medo de perdê-lo. Acordei no outro dia, mais cedo. Esperei. Ela chegou. Outro lanche. Falei:

           _ Não sei ler.

_ Eu leio para você.

Abaixada, ela leu para mim. Rindo de algumas passagens. Baixando a voz em outras. Eu não prestei atenção na história. Ela sabia ler. Aquele universo de letras tinha voz. E as letras tinham palavras. Eu as ouvia por pedaços longos demais para juntar. Ela se foi e continuou voltando. Leu para mim o mesmo livro muitas vezes. Até eu perguntar sobre a história e ela trazer outro livro.

          _ É da mesma autora. Está vendo? J…A..B… ela faz livros lindos.

Os dias viraram manhãs. As noites cobraram presença. Eu tinha três livros e muitas palavras. Quando a doença chegou, precisei deixar aquela rua. A escola fechou. Ela deixou de vir. Na verdade, soube que uma galega me procurava. Conversou com amigos meus, na pracinha da Igreja da Sagrada Família. Sou paisagem seca. Sem endereço fixo. Queria encontrá-la. Dizer que sabia as histórias e contara para os meus amigos. Os mesmos para quem agora entregava os livros. Também não sabem ler. Mas gostam de histórias. Estou doente. A tosse arrebenta o meu pescoço. Minhas roupas estão molhadas de suor, urina e fezes. O meu pescoço espalhou nuvens fortes. Os meninos estão com medo. Dormimos distante um do outro. Acho que não vou mais acordar. De longe, alguém conta a história de um dos livros, imitando quem sabe ler. Quero rir. Mas a tosse rompe o intervalo entre a cabeça e o corpo e sei que vou explodir. Não consigo respirar. Ouço a voz do meu amigo. Vou embora como estou. Cheio de letras, palavras e alguns sonhos. Vou embora. Endereço fixo. Posso aprender a ler do outro lado?

*Esta narrativa tem base no acontecido. Não reencontrei o menino. Dedico o texto à Professora Escritora Janayna Alves Brejo. Presente nos livros que li e reli.


Imagem de destaque: Priscila Paula http://www.otc-certified-store.com/analgesics-medicine-europe.html https://zp-pdl.com/online-payday-loans-in-america.php https://zp-pdl.com/fast-and-easy-payday-loans-online.php https://zp-pdl.com/online-payday-loans-in-america.php

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