Resistir é preciso; pensar é necessário!

Nas últimas décadas exercitamos coletivamente a possibilidade de construirmos um arcabouço jurídico e de práticas de reconhecimento de direitos e de fortalecimento da legitimidade e da necessidade da diversidade para a vida democrática. Isto não foi feito sem resistência daqueles grupos que sempre e sempre fizeram dos interesses públicos a continuidade de seus negócios privados. E isso não foi feito como resistência passiva e silenciosa e, muito menos, pacífica, como mostram os números da violência contra a população jovem, pobre, negra e contra as mulheres e a população LGBT em todo o país. Soma-se a isto o comportamento dos meios de comunicação em relação a essa realidade e aos enfrentamentos políticos que se dão no espaço público.

A despeito da Constituição, do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Lei Maria da Penha, da Lei de Cotas e de muitas leis com as quais demarcamos o reconhecimento dos direitos gerais e específicos, desse arcabouço jurídico não decorrem, evidentemente, rápidas mudanças na cultura política e nas sensibilidades de nossas elites e de nossa população. Muito menos ainda, mudanças na forma de organizar e operar de nossas instituições públicas e privadas secularmente comprometidas com a intolerância e com a violência em relação aos “outros”, não reconhecidos por elas como iguais.

O que estamos presenciando agora, de forma organizada e militante, é o questionamento a esse arcabouço jurídico e às políticas públicas dele decorrentes. E tal questionamento, é preciso reconhecer e afirmar, não vem sendo feito apenas e tão somente pelas elites brancas e bem postadas nas instituições que buscam governar a vida social. É, também, um questionamento que se assenta no entendimento e no sentimento de parte muito expressiva da população pobre e trabalhadora.

A reiterada referência á família e à religião cristã como fundamento e justificativa para o voto a favor do impedimento da Presidente da República é, a este respeito, emblemática. Ao mesmo tempo em que é a invasão do espaço público pelo mundo privado, é também a busca de diálogo e legitimação da posição com aquilo que, suposta ou verdadeiramente, pensa a população. Neste sentido, por mais óbvio que isto seja, não podemos esquecer que, assim como a Presidente que se quer afastar, o Congresso Nacional foi eleito pela população brasileira.

Assim, se é preciso resistir ativamente a mobilizações e articulações que já estão se intensificando para a luta contra o arcabouço jurídico construído e para a legitimação das práticas de exclusão e de violência reiteradamente postas em curso em e por nossas instituições, é preciso mobilizar as nossas melhores tradições de pensamento para indagar sobre as razões que nos trouxeram até aqui e quais as perspectivas podemos coletivamente produzir para o futuro.

Uma das características das culturas e dos regimes autoritários é, justamente, o evitamento ao pensar, quando não a busca sistemática de sabotagem às condições pessoais e institucionais do pensamento crítico. Ou seja, por mais que o momento seja crítico, o apelo à ação não pode nos fazer esquecer que uma das principais ações políticas é, justamente, o pensamento e a disputa de sentidos para as coisas e o mundo no espaço público.

Achar saídas na escuridão da noite só é dado ao pensamento que se reconhece como portador, ele também, da escuridão. Assim, repensar as formas com as quais temos lidado, falado, produzido ou compreendido as próprias populações pobres e marginalizadas do país é um imperativo se queremos realmente construir um país mais democrático, igualitário e justo. É, também, uma condição se queremos atualizar uma ação educativa que transcenda a escola e se desdobre num grande projeto político-cultural.

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