Quem é o “galo” da escola? – Aleluia Heringer Lisboa Teixeira

Quem é o “galo” da escola?

Aleluia Heringer Lisboa Teixeira

O que leva as escolas a ensinarem aquilo que ensinam? De onde parte a orientação para que as disciplinas tenham determinada carga horária e não outra?  Qual o motivo de termos currículos que se diferenciam de uma escola para outra?

Utilizaremos o termo currículo, pois este carrega a bonita ideia de um percurso educacional, “um conjunto contínuo de situações de aprendizagem às quais um indivíduo vê-se exposto ao longo de um dado período, no contexto de uma instituição de educação formal”, conforme definição do Sociólogo da Educação, Jean-Claude Forquin. Também não podemos desconsiderar que as palavras comunicam uma intenção e revelam a mentalidade que aninham. Quando utilizamos expressão currículo e não “quadro curricular”, por exemplo, ganha destaque o longo período da caminhada, ou seja, as inúmeras experiências aí envolvidas, que esperamos ser de alta qualidade. Esse item faz toda a diferença, pois se o nosso foco é apenas o produto final, os meios não interessam e corremos o sério risco de deixar de lado exatamente aquilo que nos torna humanos.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) ao delegar aos sistemas de ensino a competência de montar os seus currículos, possibilitou vários arranjos, além de não prescrever a quantidade de aulas para cada disciplina. Ela estabelece algumas obrigatórias, abre espaço para uma parte diversificada e, no mais, são diretrizes e parâmetros.

Sabemos que a configuração dos currículos se alteram de acordo com os interesses de uma dada sociedade, em razão das disputas corporativistas ou pelos valores que a  comunidade elege. Trazer para o interior da escola a discussão sobre qual disciplina irá constar ou não no currículo é o mesmo que perguntar: quem ganha e quem perde aula? Ou seja, a discussão já chega enviesada. Dessa forma, é bom deixar claro que o formato final de um currículo, não é algo apenas técnico, mas também envolve muitas disputas que passam pela visão de mundo e de educação dos sujeitos envolvidos. 

No Brasil, a partir de 2009, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ganha força ao se tornar um mecanismo de seleção para o ingresso no ensino superior e, com isso, passa a ser, indiretamente, uma referência e dispositivo regulador daquilo que as escolas irão ofertar aos seus estudantes. A meu ver, estamos diante de um sismo pedagógico que vem provocando algumas sutis movimentações onde alguns saberes ganham ou perdem espaços.

Forquin alerta para o fato de que cada geração, cada “renovação” da pedagogia e dos programas, são partes inteiras da herança que desaparecem daquilo que ele chama de memória escolar. Nesse movimento, novos elementos surgem, novos conteúdos e novas formas de saber, “novas configurações espistêmico-didáticas, novos modelos de certeza, novas definições de excelência acadêmica ou colateral, novos valores”. Então é importante estarmos atentos a esse movimento feito pelas escolas da educação básica.  Qual o sinal que a matriz do ENEM está enviando para as escolas? O formato de suas questões está em consonância com aquilo que é posto como premissa pela LDB ou pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para o Ensino Médio ou Ensino Fundamental? Diante disso, uma grave questão se coloca: qual parte de nossa herança cultural corre o risco de desaparecer nesse contexto e qual dimensão ganhará espaço?

A ameaça maior recai, como sempre, sobre aquelas disciplinas ou saberes que não têm uma utilidade imediata, mas que estão no âmbito dos conteúdos simbólicos, dos valores estéticos, das atitudes morais e sociais, conforme define Forquin, “referenciais de civilização”.  Nesse sentido, a própria DCN para o Ensino Fundamental, alerta para o modelo hegemônico que está submerso no utilitarismo ao transformar tudo em mercadoria e que “despreza as possibilidades afetivas, lúdicas e estéticas de entender o mundo”.  Além dessas possibilidades, também nas DCN para o Ensino Médio, é dito que a organização do currículo e das situações de aprendizagem, os procedimentos e avaliação, deverão ser coerentes com os valores estéticos, políticos e éticos que inspiram a Constituição e a LDB.

As diretrizes acima estão em concordância com o Sociólogo, que considera que toda tentativa de se subordinar a definição dos programas escolares a uma avaliação do grau de utilidade social dos saberes destinados a serem ensinados teria, aliás, implicações culturais devastadoras. É, a meu ver, aquela crônica de Rubens Alves que conta a história de um proprietário de granja que só pensava em lucros. Na ânsia de otimizar a produção e diminuir gastos, mandou matar os galos “por falta de utilidade”, afinal, eles não botam ovos!

No contexto da abordagem que ora faço, identifico que os “galos” da escola (aqueles que correm o risco de ter seus tempos e espaços reduzidos) são a Arte (música, teatro, canto, dança, artes plásticas, literatura, etc.), a Filosofia e a Educação Física (com seu enorme acervo de práticas corporais). Curiosamente, essas “disciplinas” compõem o conjunto de possibilidades estéticas, éticas e lúdicas de conhecer o mundo.

Da ideia do currículo como percurso, como caminhada, somos levados ao movimento apressado do turista que vai cumprindo de forma nervosa sua programação e roteiro, não como alguém que frui a experiência, mas como quem precisa ir, precisa chegar. Essa imagem, transposta para a escola, é como se a vida terminasse na 3ª série do Ensino Médio. Fiquemos atentos: o tempo da rapidez, do muito, do exagero, chegou à escola. Se vivemos a época das descobertas, da elucidação de problemas, temos que concordar com Edgar Morin (2012) ao afirmar que “os nossos ganhos inusitados de conhecimento são pagos com ganhos inusitados de ignorância”.

Oxalá os educadores do INEP e os elaboradores de itens do ENEM consigam mudar esta perigosa lógica juntamente com a valorização dos metapontos de vista só possíveis com a interdisciplinaridade. Em última instância, o que justifica o empreendimento educativo, é a responsabilidade de transmitir e perpetuar a experiência humana considerada como cultura. Temos como premissa que a escola não tem o direito de desistir deste compromisso, exceto se ela, antes, já desistiu de ser, também, Escola. 

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