Quantas famílias cabem em uma escola

Aleluia Heringer

O deslocamento da experiência escolar para o ambiente familiar tem revelado aquilo que é próprio de cada uma dessas instituições na formação de uma criança e jovem.

Nada substitui a família como primeira instância a fornecer àquela que chega ao mundo a proteção, cuidado, identidade e o legado que a antecede. Criança aprende por imitação, daí, a curiosidade e constante observação dos adultos que a cercam. Acompanha como os pais entendem e expressam diante das pequenas e grandes questões que afetam a família, a escola, a sociedade e a humanidade. Aprende com seus responsáveis, ou pelo menos deveria, os modos exigidos para uma cordial convivência social. A criança interioriza esses papéis, tornando-os seus.

Tendo ou não consciência, a família é, por todos esses motivos, a maior influenciadora daquele sujeito que, um dia, irá para a escola. Na “sua mochila”irão o repertório de palavras; o emprego da linguagem para resolver problemas;experiências corporais que o deixarão menos ou mais vulnerável a quedas; maior ou menor disciplina para lidar com o sim e o não da rotina escolar; a forma como irá se relacionar com o próximo; a pouca ou muita familiaridade com o mundo letrado;e como irá se posicionar diante de questões morais e éticas, somente para citar algumas de suas importantes atribuições.

Advindas das mais diferentes famílias, de diferentes origens e legados, crianças e jovens, agora renomeados estudantes, seguem para a escola para outros tipos de aprendizagens. É exatamente essa diversidade e pluralidade,que faz da instituição escolar o mais privilegiado espaço de socialização e sociabilidade.

Surpreende a eficiência da escola em organizar a rotina de tantas crianças. Para isso, há um ritual escolar. A professora explica e deixa escrito na lateral do quadro a rotina do dia. Essa prática ordena, passa segurança, otimiza o tempo e evita o desgaste de ter que reinventar o dia todos os dias. O que não pode faltar na rotina é a “rodinha”, quando todos elaboram e falam da própria vida. Rodinha deveria se chamar janelinha, pois é quando uma criança tem contato com o universo do outro e aprende que existem muitos mundos além do seu! E assim, o turno escolar passa rápido e há tempo para fazer atividade, lanchar, desenhar, ouvir história, brincar no quintal etc.

Escola, ao contrário da família, está estruturada para grandes coletivos, seja de uma turma, uma série, um segmento ou de todos juntos. Os adolescentes se reúnem por grupos de interesse em torno das atividades ofertadas ou por um traço da personalidade. Aprende-se com a fala de um e no contraponto do outro. Nas provocações, são desafiados a buscarem, dentro de si, defesas. Nos questionamentos ao modo de pensar, são levados a melhorar seus argumentos. As constantes frustrações fortalecem e os preparam para problemas maiores. A escola faz o sujeito crescer. Educa para a vida cidadã, para o mundo da ciência, para o espaço público, para usufruir dos bens culturais, para entender os fenômenos da vida natural e social.

Por tudo isso é que uma escola comporta mil famílias, mas uma família não comporta uma escola. São espaços com finalidades distintas, por vezes antagônicas, noutros momentos, complementares. Ainda assim, a atuação de uma não anula o propósito da outra. O que as une é a educação, essa sim, compartilhada, de longa duração e ampliada, daí nossa convicção de que uma família não sucumbe a uma quarentena, muito menos uma escola.

O ambiente escolar tem feito muita falta para estudantes, professores e famílias, e essa percepção tem relação direta com as experiências descritas acima e que, dada essa riqueza, não cabem nos enquadramentos de uma plataforma digital ou de uma live. Apesar de todas as limitações, devido à excepcionalidade que estamos vivendo, esse é o meio possível, disponível e legalmente autorizado. É com ele que iremos atravessar a crise.

Enquanto isso, o tempo está propício para que família e escola revejam atribuições específicas que se misturaram com o passar dos tempos. Com esse entendimento, o retorno ao novo normal, como após uma grande poda, poderá nos surpreender com muitos brotos, entendimentos e valorização da alçada de cada um.


Imagem de destaque: Alunos da Escola Classe 29 de Taguatinga. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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