Quando o lugar de memória é também de história, letras e educação – 40 anos do ICHS-UFOP

Raphael Machado*

Onde mora o coração? Frase batida, melosa, recorrente. Em alguns casos é usada como lugar comum para designar sentimentos de pertencimento, de identificação. O meu coração reside onde me sinto bem recebido. Onde me sinto em casa.

Alguns lugares se tornam também de memória afetiva, afetuosa. Onde mora o coração. É assim que o Instituto de Ciências Humanas e Sociais, o ICHS-UFOP, é na minha vida. Um lugar de aconchego. Foi ali que em janeiro de 2006 eu iniciei minha trajetória acadêmica. A graduação em História permitiu entender quem eu era e quem eu poderia me tornar.

Não sou especial. Minha história é de conquista e tenho plena consciência dos meus privilégios sociais. Mesmo de família de classe média baixa, operária, e não tendo nenhum familiar ou conhecido próximo que pudesse me dizer o que era a universidade, eu sou homem e branco. Sei a diferença que isso faz. Foi o ICHS quem me disse. Porque o ICHS é um espaço vivo. E ali eu vivi, mesmo. Quantas histórias!

Aprendi a ler, de verdade. Minhas leituras eram rasas e efêmeras. Meu conhecimento de cinema e música se restringia ao que o meio me oferecia. O ICHS ampliou isso por meio das amizades, saraus, professores, das “Moitas”. Sem as repúblicas federais, marianenses, quantos de nós teríamos condições de estudar? Com pouco dinheiro, só as repúblicas e o “bandeijão” nos davam as condições de manutenção fora de nossas casas familiares. E dificilmente outro espaço naquele momento brasileiro era tão receptivo neste sentido.

Era fácil? Claro que não! Quantas vezes descíamos o morro em direção ao ICHS em número de 20, 30 para tomarmos banhos no Instituto, pois estávamos sem água há alguns dias e sem luz! A falta de água após chuvas torrenciais era um problema constante. Ainda bem que ao redor das repúblicas tínhamos bicas de nascentes e de lá levávamos um pouco para pelo menos limparmos as residências. Isso nos reunia para pensar soluções e trocar conhecimento. Muitas amizades nasceram nestes momentos.

Na minha trajetória é impossível pensar no ICHS sem as “Moitas”. Seria como não se lembrar das diversas “Copas CAHIS” e o time “Burning Bloch”, em alusão ao livro Apologia da História e o ofício do historiador, de Marc Bloch e as várias vezes que os professores não puderam lecionar, pois o barulho que ecoava na quadra era muito alto e todos descíamos para torcer pelas escalações formadas pelos estudantes de cada República. Certo dia uma “seleção” das “Moitas” venceu um combinado de repúblicas particulares e o alambrado foi ao chão. Uma clara alusão aos lugares de pertencimento dos alunos. Puro exagero de nossa parte. Ainda bem que o prêmio era uma caixa de cerveja e fora muito bem aproveitado por todos. Virou festa? Sim. Sempre virava.

Impossível esquecer também do prof. José Arnaldo e as aulas de História da Arte, as excursões para o MASP e Pinacoteca em São Paulo e o Caraça. Para muitos a única viagem do ano. Para outros, a primeira vez em um museu. Sabe o impacto disso na vida de uma pessoa? Eu sei. O “Zé” sempre fará falta. E tantos outros professores que por lá passaram e deixaram marcas na minha trajetória e nas dos colegas. Carinho especial pelo professor Celso Taveira com quem entendi o que era ser um especialista em algum assunto. Quanto conhecimento! Aos meus professores e professoras, o eterno agradecimento. Sem “lero-lero”, a admiração e o amor por ter lido o que me indicaram e vivenciado algumas conversas que ainda carrego comigo. Qual instituto oferece tanta proximidade entre alunos e professores? Espero que muitos. É essencial para a formação dos sujeitos que os centros universitários se propõem a realizar.

O ICHS também não é ICHS sem os seus inúmeros e sempre amigos animais, nem sempre domésticos. Entre gatos, pássaros e cachorros, com alguns gambás, sapos e outros elementos da fauna brasileira. Os cachorros eram a maioria. Destaco dentre os vários a “Luzia”, imortal cachorra amiga de várias gerações, que em um pleito cheio de problemas venceu as eleições para a direção do Instituto, em forma de protesto dos discentes. Os “podres” deixarei de lado. Totalmente seletivo no meu texto. Afinal a ideia é rememorar alegremente.

As relações entre os sujeitos que vivenciavam aqueles espaços eram intensas. Passávamos o dia no Instituto entre as aulas da manhã, tarde e noite. Conhecíamos os funcionários e cada pessoa que atuava por ali. Sala de estudos, enorme, com várias mesas e sofás. Quantos de nós, discentes, não dormimos ali depois do almoço? E o “machu pichu”? Jardim maravilhoso atrás do prédio principal que fora redescoberto durante a gestão do prof. Ivan que deu mais cor e natureza ao nosso querido Seminário Maior da Boa Morte. Quando me noticiaram a transferência da biblioteca para o prédio novo, longe do prédio principal e das salas de aula pensei, que seria o fim da sociabilidade e ocupação contínua dos alunos. Nada disso. Os discentes continuam lá, nos “redondos”, na cantina e nos centros acadêmicos, tratando a todos pelos primeiros nomes. Os “CAs” já tiveram muitos problemas com certa mesa de pingue-pongue e “totó/pebolim”…

Quantos protestos! Por mudanças nas grades curriculares, contra fechamento do “bandejão”, por condições dignas de trabalho dos docentes, servidores da universidade, por um país melhor. Produzimos cartazes, faixas e fomos para as ruas reivindicar uma educação pública de qualidade. Várias vezes. Sempre que necessário e ainda é. A luta apenas começou. Felicitamos o REUNI e a ampliação das vagas, as cotas, os novos cursos, a pós-graduação. O ICHS atuou ao longo dos seus 40 anos como força motriz intelectual e cidadã na cidade de Mariana e região. Que cidade!

Ao longo dos cinco anos conheci pessoas que ainda povoam meus dias, marcaram minha formação humana, minhas amizades e sentimentos. Em 2010, conclui minha formação inicial e saí para o mestrado no CEFET-MG. Lecionei e o ICHS sempre esteve presente. Realizei excursões com alunos de ensino médio e o ICHS era local de visitação. Gostaria que soubessem como era aquele espaço. Que soubessem que eles, assim como eu, poderiam estar na universidade pública. E não é que alguns realmente vieram para cá!?

Eu também. Voltei. Acho que nunca saí. Seja pelos estudos com a professora Rosana Areal de Carvalho, a quem devo muito da minha formação humana e enquanto pesquisador em formação, ou pelo fato de minha irmã também ter estudado na UFOP, no ICSA, instituto irmão nesta cidade. Minhas visitas tinham novo pretexto e muitas desculpas esfarrapadas. Como sair de um lugar onde seu coração bate mais forte? E bateu forte.

Nos últimos anos a ameaça de desalojar esta instituição que completa 40 anos neste mês de novembro tem sido intensa. Comemoramos com o lindo IV Encontro Memorial repleto de ex-alunos de suas quatro décadas de existência. Todos com os mesmos sentimentos de gratidão, alegria e saudosismo marcados nas lembranças de cada um. O ICHS não é um espaço físico. É um sentimento. Uma memória. E isso ninguém retira. Ser ICHSiano é ser amor. E contra o amor nada não há argumentos.


*Atual aluno do ICHS, porque ninguém consegue ser “ex”.

 

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