Precisamos falar sobre nós: sexualidades e Direitos Humanos

Marco Antonio Torres*

Eu geralmente gosto muito de ouvir as histórias das vidas das pessoas. Quando fazia atendimentos psicoterapêuticos, como Psicólogo, sempre iniciava a conversa assim: “me conta um pouco da sua vida”. Hoje como professor da Universidade Federal de Ouro Preto, gosto de iniciar os diálogos com um pedido semelhante. Existem estudantes que desconfiam da pergunta, mas com jeito e paciência o assunto desenvolve, cada pessoa na sua cadência, cada ouvinte na sua possibilidade e cada diálogo dentro de seus limites. Aprendi com a Psicologia que ouvir pode ser um ato de generosidade e sustentar um diálogo sincero pode ser uma possibilidade de crescimento, tanto para quem fala quanto para quem escuta. Escutar e narrar também podem ser atos de coragem, em certos momentos da vida. Todavia, estamos vivendo um momento no contexto brasileiro, assim como em outros lugares, em que a fala sincera tem sido tolhida quando tratamos das sexualidades. Talvez há quem possa dizer que se tem falado muito desse tema, todavia eu digo que vivemos um silenciamento preenchido com muito barulho, com muita zoeira, com pouca generosidade. Também arrisco a dizer que é impossível um ser humano falar de si quando temos proibido os relatos das sexualidades, dos afetos, dos encontros e desencontros que vivemos no cotidiano. Sexualidades, a que me refiro aqui, diz daquilo que a vida nos tem apresentado em siglas como LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersex, entre outras sexualidades), ou ainda, em experiências não binárias, pós identitárias ou de outras formas quaisquer. Aqui, talvez você se incomode, pode pensar que eu estou querendo complicar as coisas. Calma! É importante ouvir o outro e resistir ao desejo de tolher seu relato quando ele passa a nos incomodar. Devemos enfrentar o desejo de controlar quem fala quando sua narrativa nos surpreende com o que ainda não compreendemos, ou quando nos arriscamos a ouvir sobre pontos de vista que discordamos. É um exercício para nosso entendimento abrir nossos sentidos ao que discordamos, ainda que dificilmente concordemos com determinadas opiniões. Neste sentido, quando a palavra novamente circular, também poderemos nos posicionar. Até mesmo porque nas experiências da vida, como nas questões das sexualidades, temos algumas nuanças que talvez não compreendemos. Pessoas com muitas certezas, podem tender ao fanatismo. Ao longo da história humana o fanatismo tem se constituído em um grande inimigo do diálogo, da compreensão e do processo civilizatório. A Educação em Direitos Humanos nos ensina a combatê-lo e nos aponta uma direção que vai ao encontro do embate pelas idéias. O fanático não dialoga; por todo tempo ele discursa. Neste ponto, o campo dos Direitos Humanos, das lutas humanas por dignidade, nos indica que sem ouvir, sem falar, enfim, sem dialogar é impossível exercitar a empatia necessária que reconhece a humanidade do outro que nos parece diferente.

O primeiro passo para aniquilar a vida de alguém é retirar sua voz ou ridicularizá-la, simplesmente porque ela não se encaixa nos estreitos limites de nossa moral. Judith Butler¹, uma intelectual que tem agitado as questões de gênero e das sexualidades, ao retomar algumas reflexões sobre moralidade, nos indica que os relatos são importantes para pensar as três dimensões do processo de reconhecimento. Tenho compreendido que relatar e reconhecer são ações irmanadas, são passos importantes na constituição da dignidade humana. Quando relatamos, o fazemos para nós mesmos, para o outro e para uma comunidade. Para Butler, quando em algumas dessas dimensões do reconhecimento o relato é proibido, calado, negligenciado, temos a produção de uma das formas de violência ética. Resistir a essa violência é um ato corajoso de crianças, jovens, adultos e idosos que insistem em contar suas histórias sem excluir suas sexualidades, aquilo que desagrada. Muitas vezes, ainda que sem consciência, exercitam uma fala franca. Como homem gay aprendi que minha vida não existe, nem faz sentido, quando dela excluo minha sexualidade. Minha dignidade depende de uma franqueza sobre aquilo que me faz vibrar com a vida, apaixonar-me pelas pessoas, compartilhar de meus dias com minha comunidade. Neste breve texto quero defender a importância das sexualidades quando falamos de nós nas escolas, nas igrejas, nas famílias ou em outro lugar qualquer. Sem falar de nós, de modo franco, nos afastamos daquilo que entendo por dignidade da pessoa humana.

Retomo neste ponto as dimensões do reconhecimento propostas por Butler: o relato para si, para o outro e para comunidade. Essa tríade é por onde podemos tecer formas de reconhecimento da dignidade humana.  Elas estão interligadas e ao mesmo tempo são específicas.

Na primeira dimensão do reconhecimento trago uma cena narrada por uma professora da educação básica, no contexto de uma pesquisa que eu orientei no mestrado. Ela contava que na escola um menino sempre ameaçava um outro, acusando-o de ser gay. Quem ameaçava, dizia para se ter cuidado, pois o “Bolsonaro vinha aí para acabar com os gays”. A fala era acompanhada com gestos de intimidação. O relato deixou-me bastante perturbado. Para quem aquele menino, vivendo sua conturbada puberdade e atacado pela homofobia poderia narrar seu sofrimento? Quais as possibilidades teria ele de reconhecer sua dignidade? Não sabemos se esse menino é ou será um homem gay, mas ali, naquela cena, haviam muitas formas de violência que se constituem em objeto de denúncia institucional. Quando as escolas impedem os diálogos sobre as sexualidades, promovem a homofobia e bloqueiam processos de reconhecimento de si. Elas também produzem violência ética quando inibem uma semântica que possibilite à criança entender sua existência.  O relato de si pode possibilitar ao sujeito atribuir sentido à sua forma de existência.

Sobre a segunda dimensão do reconhecimento, cito um caso que vivi no final da década de 1990. Àquela época, junto ao Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (Nuh) da Universidade Federal de Minas Gerais, lutávamos pelo direito do nome social na Rede Municipal de Educação, em Belo Horizonte. À época, uma pessoa compreendida como trans, que atuava no núcleo, foi solicitada a fazer um depoimento em defesa do nome social. A defesa se deu em uma reunião do Conselho Municipal de Educação de Belo Horizonte. Enquanto ela relatava, eu e muitos/as dos presentes estávamos impactados pela força do texto que reunia momentos de poesia, denúncia e sofrimento.  Ela defendia a importância do nome social. Asseverava que o nome era o convite para participar da celebração da vida e que viver com um nome que não era reconhecido como seu, era não participar dessa celebração. Não me recordo as palavras exatas mas lembro-me que tudo aquilo emocionou-me e jamais consegui esquecer. Ao final, ela disse: “quando nada mais restar do meu corpo, meu nome ainda resistirá!” O nome como transcendência, como celebração da eternidade. Eu, assim como tantos outros, que jamais poderemos compreender totalmente aquela forma de existência, ouvimos o relato que produziu um reconhecimento profundo da legitimidade do nome social e nos alertou para os terríveis danos da transfobia. Tenho conhecido travestis, transexuais e pessoas “pós identitárias” e as considero como grandes educadoras em minha vida. A cada dia aprendo com elas a necessidade de alargarmos os estreitos limites de nosso entendimento da diversidade de vidas e a pluralidade das relações afetivas e das sexualidades. O relato dessas pessoas, ao contrário do que imagina o senso comum, é repleto de dignidade e não de promiscuidade. Lamento ainda ser incapaz de pensar aqui os homens trans, entre outras sexualidades.

A terceira dimensão do reconhecimento se dá diante da comunidade. Trata-se da desconsideração das formas de vida reconhecidas como lésbicas. Nos últimos tempos, aproximei me de modo mais efetivo de relatos lésbicos compartilhando, em muitas oportunidades, de diálogos sobre lesbianidades com mulheres que se definem por essa sexualidade. Considero que não poderei compreender plenamente as lesbianidades, mas preciso de seus relatos porque eles se constituem uma parte importante da dignidade humana. Geralmente quando se fala de gays e homossexuais, muitos acreditam que as lésbicas estão aí contempladas, porém é um grande engano. Algumas demandas das sexualidades parecem comuns, podem até trazer semelhanças mas não podemos reduzir as lesbianidades numa generalização que invisibiliza os relatos lésbicos. Um dos exemplos dessa invisibilização nos remete à discussão tardia relativa às Infecções Sexualmente Transmissíveis nas relações lésbicas. As políticas de prevenção eram e são produzidas, muitas das vezes, somente diante da existência de um homem na relação sexual. As políticas públicas que não tratam das lesbianidades e suas especificidades é uma politica lesbofobica, produz e reproduz lesbofia e prejudica a inteligibilidade necessária ao reconhecimento dos direitos à saúde.

A dignidade, no campo dos direitos humanos, exige “fala” e “escuta”, exige um diálogo sincero e profundo sobre nós mesmos. As sexualidades não podem estar excluídas desses diálogos que produzem formas de reconhecimento capazes de enfrentarem a violência que provoca incontáveis sofrimentos. Essa violência pode atingir uma criança nos corredores de uma escola, uma mulher trans que luta pelo seu nome social ou ainda por uma mulher lésbica que enfrenta nossa negligência em relação aos ataques que sofre. Os sofrimentos não relatados podem tramar no caos do silêncio os suicídios que tantas vezes não compreendemos, as neuroses que consomem nossas energias. No campo da Educação em Direitos Humanos aprendemos que em todo espaço precisamos falar de nós, falar de nossos direitos, divulgar que na celebração  da festa desta vida, todos, todas e todxs tem o direito de participar. Michel Foucault² em seus últimos escritos, revisitando os gregos antigos, dedicou se a pensar sobre a coragem da verdade, do exercício de aproximar nossas vidas de nossas falas, de dizer com franqueza sobre nós. Também Guimarães Rosa³ falou da coragem que essa vida nos exige. Assim, quero terminar este texto celebrando a coragem de lésbicas, crianças gay, travestis e transexuais, entre tantos outros, que sobrevivem à violência do dia a dia ou sucumbiram à crueldade humana.

¹BUTLER, J. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

²FOUCAULT, M. A coragem da Verdade. O Governo de Si e dos Outros II. Curso no Collège de France. (1983-1984). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

³ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1965.

 

 

* Professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto


Imagem de destaque: ROBIN WORRALL / Unsplash https://zp-pdl.com/best-payday-loans.php https://www.zp-pdl.com https://www.zp-pdl.com http://www.otc-certified-store.com/antibiotics-medicine-usa.html

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