Política, “mito”, luta

Alexandre Fernandez Vaz

Um dos importantes avanços políticos dos últimos tempos são os processos de reconhecimento vinculados às políticas de identidade. O contemporâneo tem visto emergir grupos organizados de diferentes matizes, reivindicando participação social sem amarras, desde seu lugar de fala e ação. Este movimento tem a ver com uma história de repressão e lutas neste país, história marcada pelo autoritarismo e pela violência, mas também pela resistência a eles.

Os impactos desses processos têm acontecido em diferentes âmbitos, inclusive na Educação Superior, como se sabe. As políticas de ação afirmativa, que têm se mostrado muito exitosas, são exemplo, o uso do nome social por parte de pessoas trans* é igualmente um avanço, o que não significa que tenhamos que nos contentar com o já alcançado. Há muito o que melhorar, sem dúvidas, mas é preciso reconhecer que em algo andamos.

As políticas de ação afirmativa devem tender a desaparecer, na medida em que a sociedade se democratize, ou seja, enquanto houver desigualdades determinadas pela posição de classe, gênero, raça/etnia, condição sexual etc., então seguirá a necessidade de mecanismos que contribuam para a equidade social. Não se trata, portanto, de oferecer privilégios, mas fazer acessar direitos. Suponho que uma das dificuldades de parte das camadas médias superiores e das elites, em lidar com a questão, se refere ao hábito, por demais arraigado, de que o favor é a forma mais legítima de se relacionar com grupos sociais que não aos que elas pertencem. A perspectiva liberal, iluminista, segundo a qual o direito deve prevalecer, ainda é algo pouco sedimentado entre nós.

Não deixa de causar estranheza, portanto, que um candidato a presidente, o Deputado Federal Jair Messias Bolsonaro, tenha recentemente anunciado que deverá acabar com o “coitadismo” o qual, segundo ele, acometeria grupos vistos por outros como politicamente minoritários. Associado a isso, acrescentou que as políticas de ação afirmativa aumentariam o preconceito em relação à parte desses grupos. No que se refere a este ponto, ele parece retomar um velho expediente de exclusão, aquele que imputa à vítima a culpa por ser discriminada. No segundo caso, afora o neologismo infeliz, a maneira liberal de acabar com a situação de desigualdade é, ao contrário, investir nas ações afirmativas enquanto necessárias forem, e simultaneamente promover medidas que as tornem desnecessárias. As cotas sociais, defendidas pelo candidato sem que ele diga com clareza como seriam realizadas, não são suficientes. É assim, em maior ou menor medida, em países insuspeitos de “comunismo”, como os Estados Unidos da América e a Alemanha, atualmente liderados, respectivamente, por um presidente republicano e uma primeira-ministra democrata-cristã.

Por falar em “comunismo”, o Brasil talvez seja o único país do mundo em que um número grande de pessoas diz acreditar que os “comunistas” ameaçam tomar o país e corromper as crianças. Acreditar em afirmações absurdas é um esporte muito nosso, e talvez seja por isso que com tanta facilidade apoiadores do Deputado a ele se referem como “mito”. De fato, um dos ganhos da civilização é o combate ao mito, quando este é pretendido como explicação sobre realidade, solução para problemas concretos. Não se trata de eliminar a mitologia consagrada na cultura, que muito ensina, mas de entendê-la como tal e em seu lugar próprio. A questão é outra. Os fãs do Capitão Reformado têm, paradoxalmente, razão: é de mito que se trata. De mentira. Duro é pensar que tantos eleitores, fundamentalmente, sabem do absurdo, mas não se dão conta disso. Ou pior, se dão, mas seguem se recusando a pensar.

Precisamos de mais razão na política, não a de tipo instrumental, a que desconhece a possível ilegitimidade de fins e que funciona como puro meio, mas daquela que é capaz de autocrítica. O problema que se coloca é o da crítica à razão por meio do obscurantismo, já que o movimento de extrema-direita é, entre tantas outras coisas, anti-intelectualista. É uma crítica ilegítima. Enquanto houver fome, haverá mito, escreveu Walter Benjamin. Enquanto houver mito, teremos fome: de pão, de liberdade, de democracia.

Faz parte desse anti-intelectualismo a infantilização generalizada, que desacredita a política e no lugar dela coloca a figura paterna de identificação imediata. Neste caso, parece que quanto mais autoritário, mais convincente. Quanto ao eleitor, quanto mais diminuído em seu pensamento, mais “tranquilo” parece ficar. Esse aparente apaziguamento da alma, este afastamento da incerteza que parece não mais ameaçar, é o prenúncio da dominação. Mais que isso, é sua plena realização.

Uma mostra eloquente desse fenômeno é o recente caso do Deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidenciável, que apareceu em vídeo feito há alguns meses, ameaçando como possível, desejável e fácil, o fechamento o Superior Tribunal Federal, em caso de posição da Corte que contradissesse a candidatura paterna. Segundo o pai, que censurou o filho, o “garoto” de trinta e quatro anos e que acaba de ser eleito para novo mandato parlamentar já se havia desculpado, tirando do episódio um aprendizado. Todos têm o direito a reparar um erro, mas não vi até agora a autocrítica por parte do homem adulto e capaz de assumir suas responsabilidades.

Uma das boas batalhas que os opositores da última ditadura travaram foi contra a privatização dos símbolos pátrios. Não, a bandeira não é de parte dos brasileiros, de grupos dominantes, mas de todos que se sentem por ela representados. Assim também é com o hino nacional. Lembrei-me disso há pouco, ao escrever sobre o filho do postulante ao cargo de presidente. Bolsonaro, aliás, se recusa a debater publicamente suas posições. Ao contrário do que seu comportamento indica, prefiro pensar que viver no Brasil pela democracia é reafirmar: Verás que um filho teu não foge à luta.

 

Ilha de Santa Catarina, outubro de 2018.

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