Poderia ser um dia para comemoração, mas terá de ser de luta!

Romerito Costa Nascimento*

Caros amigos,

O dia 3 de dezembro de 2019, dia internacional da pessoa com deficiência, mais do que nunca, é um dia para recordarmos a luta e para continuarmos lutando. Talvez nunca tenhamos sido tão atacados em nossos direitos como estamos sendo agora.

Estamos diante de dois projetos de lei que tramitam no congresso nacional que será um grande golpe nos direitos até hoje conquistados. Ambos atacam frontalmente aquilo que vimos construindo desde 2006. Que é o olhar sobre a deficiência não como responsabilidade do indivíduo que a possui, mas como uma interação entre a deficiência – caráter biológico – e as barreiras – caráter social.

No projeto enviado pelo poder executivo, que tramita em regime de urgência, há uma alteração significativa, permitindo ao empregador a troca da contratação das pessoas com deficiência para a contribuição a um determinado fundo.

Todos nós sabemos, não é novidade, que muitos dos empregadores acreditam que pessoas com deficiência não são necessários à sua organização. Que nós não contribuímos para seus lucros. Que, pelo contrário, somos despesas. Por isso o oferecimento de postos de trabalho menos qualificados ou, chegando ao absurdo de oferecer o assentamento na carteira em troca de ficar em casa sem executar tarefa alguma. Contribuir para um determinado fundo será “mais fácil”, desobrigando ao empregador do “ônus” de ter estes indivíduos em sua equipe.

Podem até parecer duras minhas palavras, mas é assim que alguns dos empregadores pensam. O empregado é uma ferramenta de produção de lucro, caso esta ferramenta apresente algum “defeito” e não “funcione” de forma “adequada”, não é necessária e deve não pertencer ao meu hall de ferramentas, visto que comprometerá a produtividade das outras que terão de suprir o “defeito” ou a não funcionalidade da ferramenta desviante.

A possibilidade das cotas, por meio da obrigatoriedade, coloca o empregador de frente com a situação e possibilita a mudança de mentalidade. Com isso o empregador vai sentindo que existem muitas possibilidades de que aquela ferramenta “defeituosa” com seus “defeitos” e algumas modificações na estrutura e processos possa produzir e dar lucros. Inclusive fazendo com que as outras ferramentas possam ser mais produtivas. Realidade como estas estão presentes em muitas falas de empregadores que contrataram pessoas com deficiência por imposição legal, mas que depois mudaram suas mentalidades. Portanto, a obrigatoriedade funciona como ferramenta singular para esta mudança de mentalidade para além de sua característica simbólica de fornecer dignidade humana por meio do trabalho produtivo.

Para ficarmos somente na esteira do trabalho, o outro projeto que tramita na câmara dos deputados, considera as pessoas com visão monocular como pessoas com deficiência. O primeiro argumento contra este projeto, sem prejuízo de inúmeros outros, reside no que falamos anteriormente sobre a escolha feita por nosso país em reconhecer que a deficiência reside na interação da condição biológica com as barreiras enfrentadas pelas pessoas. Ou seja, para que a pessoa seja considerada pessoa com deficiência, a sua condição biológica precisa gerar desigualdade de oportunidade, interferindo em sua funcionalidade e na sua qualidade de vida. Eis a grande pergunta: quais barreiras as pessoas que têm visão monocular, com cegueira em um olho e visão normal em outro, enfrentam no seu cotidiano que interferem significativamente em sua qualidade de vida?  A segunda pergunta, desdobramento da primeira, quais são as adaptações necessárias a este público, que tecnologias assistivas ou ferramentas de equidade são necessárias?

Voltando ao trabalho, tendo como premissa que as respostas para as perguntas acima são respectivamente nenhuma e nenhuma, qual empregador, com base na visão da utilidade e da não mudança de estrutura não irá preferir contratar pessoas que não demandam e ainda são funcionais? Assim, não será somente o segmento das pessoas cegas ou com baixa visão que será frontalmente prejudicado, os outros segmentos também o serão. Lembremo-nos que o artigo 93 da lei 8213 não separa as cotas por segmento de deficiência.

Portanto, o que estamos dizendo todos estes dias não é um mimimi. É uma situação real de perda de direitos que, se não estancada a sangria, poderá se descambar para ainda mais segregação, ainda mais indigência do nosso segmento.

Não deixemos que nossas “visões milpes” do mundo nos impossibilitem de ver o todo. A sucumbência de quem nos governa, nas mais diversas instâncias, aos ditames do mercado sem escrúpulos estão tirando nossas pequenas possibilidades de emersão da lama da caridade.

Para finalizar: em momento algum sou contra o acesso, pelas pessoas com visão monocular, aos serviços de políticas públicas que os garantam o tratamento adequado. Somente não acho que enquadrá-los como pessoas com deficiência seja justo. Até agora, participando do movimento de pessoas com deficiência, não vi pessoas com visão monocular engrossando as fileiras de lutas.

Retomando ao dia 3, tomemos o seu real motivo e o marquemos como o ponto inicial de nossa mudança de mentalidade. Precisamos sair de nossa zona de conforto e juntarmos força para não permitirmos estes retrocessos que se avizinham. Embora seja difícil e que tenhamos muitos custos para lutar, é imperativo que lutemos! Eu também estou tentando sair de minha bolha que até então eu tinha me colocado achando que já havia feito muito. Esta semana estou aprendendo que, por mais que eu não signifique quase nada, ainda posso e devo contribuir, se não para a conquista de mais direitos, que ao menos eu contribua para que nós não percamos os já conquistados.


Romerito Costa Nascimento, pessoa cega e servidor público federal na UFMG. Tem formação em ciências sociais e pós-graduação em Transtorno do Espectro Altista. Atua nas áries do direito à educação, educação inclusiva, inclusão no ensino superior e direito das pessoas com deficiência em geral. E-mail: romeritocnascimento@gmail.com

Imagem de destaque: Marcello Casal Jr\Ag. Brasil

 

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