“Perdemos um grande parceiro: as escolas”

Entrevista com Iara França Camargos sobre o combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes

Luciana Bizzotto*

Túlio Campos**

Larissa Altemar

Coletivo Geral Infâncias

Nos últimos meses, o Coletivo Geral Infâncias canalizou energias para escrever refletindo sobre a infância em tempos de isolamento social. Considerando que no dia 18 de maio o Brasil celebrou o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, nos organizamos para tratar desse assunto espinhoso, e muitas vezes negligenciado.

A Nota Técnica sobre a Proteção de Crianças e Adolescentes no Contexto da Pandemia de COVID-19, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), aponta como o contexto da quarentena torna essencial jogarmos luz para essa triste realidade. Somente assim poderemos propor e colocar em prática medidas de ação e prevenção. Com isso, convidamos a delegada Iara França Camargos, da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA), da Polícia Civil de Minas Gerais, para compartilhar suas experiências na luta diária em defesa de crianças e adolescentes em Minas Gerais.

Coletivo: Diante do isolamento social, o fechamento das escolas e a crise econômica, como você enxerga os possíveis reflexos nas diversas formas de violência contra crianças e adolescentes?

Iara: É uma situação muito nova que estamos vivendo. Como é um cenário completamente diferente, inclusive para a polícia, são muitos desafios. Os tipos de crimes estão se modificando neste período da pandemia. Os crimes virtuais cometidos contra a criança e o adolescente, como envio, armazenamento e produção da pornografia infantil, sofreram um aumento considerável. Temos ainda outros crimes subnotificados, como agressão física ou abuso sexual de mulheres, crianças e adolescentes. Com as pessoas mais enclausuradas, o abusador não deixa de cometer o crime: ele encontra outros meios.

Coletivo: Quem são os mais vulneráveis?

Iara: Pelas experiências no DEPCA, em um traçado mais genérico, as vítimas pertencem às famílias onde o pai é provedor absoluto. Ele é quem costuma determinar as relações sociais. É ele também que traz o sustento material da casa. Nessa configuração patriarcal, crianças e mulheres ficam submissas às ordens e desejos masculinos. Neste contexto, a grande maioria das vítimas são meninas, embora o aumento do número de casos de violência contra meninos esteja chamando a nossa atenção. Outro fator importante a ser considerado é a naturalização da violência. Em muitas famílias de classe baixa, predominante e historicamente, é possível observar que a educação precede a violência. Consideram que é preciso o uso da violência para educar, com argumentos como “Fui educado assim” ou “Lá na roça era desse jeito que criança era educada”.

Coletivo: Quais as diferentes formas de reação da criança ou do adolescente à violência, a partir do que observa em seu trabalho na DEPCA?

Iara: A complexidade em lidar com situações de violência é que, muitas vezes, as crianças não conseguem verbalizar o que aconteceu ou identificar que estão sendo vítimas de abuso. Em residências onde não existem cômodos, elas presenciam, não raramente, situações em que observam os pais na intimidade, sendo expostas a um tipo de violência sem ao menos saberem. Essa exposição, considerada abusiva, traz para a criança uma percepção fragmentada da conjuntura social e, com isso, alguns atos tornam-se naturalizados. Aquelas crianças que não vivenciam situações parecidas conseguem perceber de maneira mais rápida quando algo lhes parece diferente do seu cotidiano.

Coletivo: Quais são as formas ou os sinais para identificar a ocorrência desses abusos?

Iara: O importante é observar sempre. Quem está ali com a criança, todo dia. Por isso o papel da escola é tão importante, porque o(a) professor(a) que está com ela sabe como ela é, como se comporta com o colega, como é dentro de sala, nos diferentes espaços da escola. Uma criança calorenta que está a uma semana indo de moletom para a sala de aula e se recusa a tirá-lo pode ser um sinal. Coisas desse tipo chamam a atenção dos educadores. São exatamente os pequenos detalhes que são importantes, porque a criança não consegue esconder por muito tempo situações que a afligem. Ela pode não verbalizar, devido a ameaças do agressor. Contudo, em certo momento, manifesta algum comportamento que foge do seu jeito de ser cotidiano. Em redes de apoio, é preciso empoderar as crianças. A Educação Sexual, nesse sentido, tem um papel fundamental, pois é conhecendo os limites e possibilidades do seu corpo e do corpo do outro que a criança ou adolescente poderá dizer sobre aquilo que traz desconforto.

Coletivo: O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) comemora seus 30 anos, e destaca dentre seus princípios o direito à proteção à criança, responsabilidade que deve ser compartilhada entre a família, a comunidade, a sociedade e o poder público. Como devemos trabalhar na prevenção da violência contra crianças e adolescentes? Como a DEPCA tem atuado nesse sentido?

Iara: O ECA é uma lei muito boa, bem redigida, e que, abstratamente, na norma jurídica, trás essa proteção necessária para a criança. O que precisamos hoje é que a realidade alcance a norma abstrata, porque a violação do direito à criança começa desde o momento do seu nascimento. Contudo, temos visto uma onda de desmonte das políticas públicas de proteção à criança e ao adolescente, do acesso à cultura, ao lazer e à educação. Precisamos cotidianamente mobilizar todas as redes: o Estado, a Sociedade Civil, as Escolas e as Famílias, para um trabalho em conjunto. O DEPCA tem uma parceria muito importante com escolas, e juntos buscamos ampliar nossas redes no intuito de aproximar ações mais conjuntas no combate à violência de crianças e adolescentes. Atualmente, nosso grande desafio durante a pandemia é justamente lidar com o fechamento das instituições de ensino. Perdemos um grande parceiro, pois muitas denúncias são realizadas na escola, seja por parentes próximos, vizinhos ou professores.

*Doutoranda em Educação e Inclusão Social, pela Faculdade de Educação da UFMG, na Linha de Infância e Educação Infantil. E-mail: bizzotto.lu@gmail.com

**Professor de Educação Física do Centro Pedagógico da Universidade Federal de Minas Gerais e Doutor em Educação. E-mail tulio.camposcp@gmail.com


Imagem de destaque: serenestarts / Pixabay

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