Para pensar a produção e a avaliação nas Humanidades

Alexandre Fernandez Vaz

Quem no Brasil frequentou a pós-graduação em um programa de Humanidades nos anos 1990 viu o sistema experimentar mudanças importantes em sua estrutura e mentalidade. A massiva aposentadoria de professores nas universidades federais naquela década abriu espaço para uma nova geração de colegas que ingressavam no quadro docente portando o título de mestre. Alguns cursavam o doutorado, outros logo o começariam, o que veio a constituir um corpo de doutores com potencial de pesquisa, docência e orientação na pós-graduação. Foi se tornando cada vez mais incomum a presença de professores universitários na condição de alunos de mestrado, passando este nível a receber com mais frequência pessoas muito jovens, algumas recém-saídas da graduação e da experiência da iniciação científica. Os programas se multiplicaram, e entre os já antes existentes muitos se ampliaram, passando a acolher candidatos ao doutorado. De forma concomitante, aumentaram a rigidez com os prazos de conclusão de teses e dissertações, o controle da produção acadêmica, as exigências de internacionalização. Introduziu-se a Plataforma Lattes.

Tal crescimento aconteceu malgrado um conjunto de dificuldades estruturais e financeiras de diferentes tipos, desde o impedimento do primeiro presidente eleito do período pós-ditadura e a inflação alta dos primeiros anos da década, até a estabilidade econômica alcançada pelo Plano Real, que teve um custo social nada desprezível, o que incluiu um período de forte arrocho salarial. Aquele período, que foi o do Consenso de Washington, presenciou os começos da internet como ferramenta para tudo, inclusive para a pesquisa e divulgação de seus resultados. Os anos seguintes testemunharam o fim das versões em papel da maioria dos periódicos científicos.

Tudo isso ajudou na profissionalização da pesquisa nas Humanidades, uma vez que a atividade científica no Brasil está em boa medida atrelada à pós-graduação, mesmo que entre nós ela nunca tenha alcançado a importância que tem o ensino, única atividade irrenunciável na carreira docente. Por outro lado, as mudanças criaram uma série de problemas, vários deles derivados de uma incorporação postiça de critérios de produção e avaliação consagrados nas Ciências Naturais e eventualmente nas Tecnológicas. Com pouco peso na política científica e recebendo parcos recursos para o financiamento de suas pesquisas, as Humanidades procuram se adequar ao sistema e a suas exigências. Ao fazerem isso, correm o risco, no entanto, de perderem sua força motriz.

Um dos desconfortos desse movimento se materializa nas dificuldades com o tema do autoplágio (também do plágio, mas isso deixo para discutir em outro momento). Trata-se de prática condenável na produção acadêmica porque aumentaria de forma artificial a pontuação obtida pelo autor nos momentos de avaliação. Não fosse isso importante para o atletismo acadêmico, seria razoável e mesmo desejável retomar parte do que se escreveu antes e aprofundar análises e argumentos, ou mesmo publicar mais de uma vez o mesmo material, já que o alcance do texto seria mais extenso. A coisa chegou a tal ponto que há periódicos que não aceitam trabalhos que antes foram publicados em anais de eventos, mesmo que substancialmente modificados. Isso é algo que em países com tradições acadêmicas mais sólidas do que a nossa se resolve até mesmo com a divulgação provisória do artigo em sites e blogs, de maneira que ele possa sofrer uma crítica inicial de pares antes de ser submetido à avaliação formal.

Há outros problemas nessa tentativa de adequação das Humanidades. Dada a dinâmica da pós-graduação, a publicação conjunta entre orientadores e orientandos tem sido incentivada, como acontece, de maneira costumeira, nas Ciências Naturais. Nestas não há dúvidas: o projeto é do orientador e graduandos, mestrandos e doutorandos fazem parte dele, ocupando-se cada qual de um fragmento do processo. Mas a coautoria também vem sendo rechaçada entre nós, com periódicos que não aceitam a submissão de artigos dessa natureza. Pretendem, com isso, defender a autoria como originalidade, evitando a carona ou a simples reivindicação coautoral por parte do orientador que, com mais uma publicação, auferiria pontos para seu currículo sem que houvesse mérito para tal.

A questão é complexa e no final das contas cada um que assuma suas responsabilidades na elaboração da pesquisa e do texto a ser submetido, de maneira que em comum acordo (e não por imposição vertical) se o firme ou não. O limite que se interpõe é ético. Observo ainda dois pontos. O primeiro é que assinar um trabalho para publicá-lo é não apenas auferir o bônus, mas também assumir a responsabilidade e o eventual ônus que ele possa trazer. O segundo é que redigir um artigo não é fácil, exige com frequência um laborioso aprendizado de elaboração escrita, algo que mestrandos e também doutorandos, isoladamente, escassas vezes conseguem realizar com êxito.

Essas questões todas desembocam na avaliação da performance dos pesquisadores, procedimento visto como necessário para ranquear a divisão de recursos para a pesquisa. Dadas as dificuldades encontradas na produção e veiculação dos artigos e outros artefatos, avaliar tampouco é fácil. Uma estratégia que tem sido apontada como solução, ao menos parcial, embora haja dúvidas em relação ao melhor instrumento para aplica-la, é medir o quanto um autor é citado. Um dos problemas, neste caso, é que a cultura nacional não é muito afeita a mencionar, incorporar e debater trabalhos alheios, tanto porque uma boa revisão sistemática não é nosso forte (às vezes sequer os trabalhos publicados no periódico em que o artigo aparece são considerados), quanto porque há eventual prática de esquecimento deliberado de autores que já publicaram sobre o mesmo tema.

As Humanidades têm muito o que aprender com outras grandes áreas, mas elas precisam manter seus pilares, sem os quais deixam de ser o que são. Entre eles, o cultivo da escrita, que pode ser não apenas comunicativa, mas igualmente expressiva, conforme, aliás, as exigências que o objeto em sua dinâmica histórica impõe a quem a ele se dedica. É bom que tomemos o cuidado não sermos mais que funcionários da pesquisa. Não é assim que se constrói uma tradição.


Imagem de destaque: J. Kelly Brito / Unsplash

 

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