Palavras na palma da mão

– o dono é o discurso, o resto é peta –

Ivane Laurete Perotti

[…]impossível existir linguagem sem pensamento e linguagem-pensamento sem o mundo a que se referem, a palavra humana é mais que um mero vocábulo – é palavração. PAULO FREIRE

Cabisbaixo, o menino ruminava pensamentos. O rosto contraído desenhava ruídos. Frágil a face que acobertava o homem crescendo aos borbotões.

_ Tonho! Tonho!

_ Tonho, mininudesajuizadu! Presta atenção nu caminhu!

Tonho que era Joaquim não respondeu. Pensava nas lições da escola, nas aulas de história e todas aquelas datas que precisava saber. As palavras estranhas que aprendera na aula de Inglês. Aquelas coisas de nome e pronome na aula de Língua Portuguesa do Brasil. Do Brasil!

_ Mãe? Por que eu tenho de ir à escola?

_ Ô, mulequi. Ocê tem di i na iscola prá istudá! Prá sê gente!

_ Eu sou gente!

_ Prá sê homi, mininu!

_ Eu sou um homem!

_ Tá mangano di mim, é? Ocê percisa istudá prá sê diferente di mim e du seu pai.

_ Eu…quero ser como vocês!

Tonho sentia mais do que compreendia a relação entre a escola e ser diferente de seus pais. Eles trabalhavam muito, eram honestos, íntegros e recebiam quase nada. Estavam velhos e cansados. Admirava-os do alto de seus doze anos. Fora assim com o pai de seu pai e com a mãe de sua mãe. Ninguém estudara, mas todos trabalharam muito. De seus oito irmãos, apenas ele entrara na escola. Não se saía muito bem, mas o esforço era verdadeiro.

Naquela manhã, um texto lido na aula de Sociologia socara-lhe o estômago. O texto era de um jornal da cidade. Falava em estatísticas de trabalho, emprego e dizia não existir garantiasde sucesso para os alunos depois da formação escolar. O professor explicou, mas ele não entendeu. Se sabia ler, escrever e calcular, sabia muito. Era o único na sua casa

_ Mãe, e se…

_ Fala,mininu!

_ E se eu não conseguir ser quem vocês querem que eu seja?

_ Arre! Nóis num qué qui ocê seja nada di mais. Nós só qué qui ocê seja livre!

_ Eu sou livre!

_ Ah!, meu fio… isso num é não.

A cabeça de Tonho rodava entre as equações aprendidas na manhã, a força do texto que lera, as datas que não poderia esquecer e as provas na semana vindoura. Pensativo, distraiu-se com os livros e os deixou cair. Muito rapidamente a mãe juntou todos eles.

_ Meu fio, nunca mais…nunca mais deixe isso acuntecê. Os livro são genti. Eles fala!

_ Mãe, é só um monte de f…

_ É só nada! Tá veno essas letrinha aqui? Pois eu munto queria sabêo que dizim.

_ Eu leio para você.

_ Não é inguar. Não é…eu queria pegá essas letrinha ansim, na palma da mão e brincá cum elas. Infieirá, uma a uma, com a ordi di meu pensamentu.

_ Pensamento?

_ É, fio. Meu pensamento vai longi, inguar ocê vai.

E a mãe de Tonho falou bonito. Falou das histórias em seu mundo. Falou do mundo em suas histórias. Falou que gostaria de ler os livros folhudos para descobrir palavras escondidas, para cutucar a terra fértil. Naquele momento, Tonho apenas guardou o dito. Desconhecia-lhes a força e a poesia. Mas o tempo tem rodas e as rodas do tempo giram.

_ Ô, dotô Joaquim! Bas tardi!

_ Olá, seu Paulo. Me chame de Tonho!

_ O sinhô vai prá iscola?

_ Vou. Mas antes eu preciso dar uma palavrinha com a comunidade.

_ Simbora!

Tonho lembrou da palma da mão de sua mãe. Ela desenhara as letras que lhe abriram o caminho do entendimento. Então, aprendera a ler além do que estava escrito. Aprendera a ouvir além do dito. E aprendera a pensar por si mesmo.

_ Seu Tonho, o senhor leu o jornal?

_ Li, Dona Joelma. Mas o que me preocupa não é a notícia: é o discurso. A gente precisa cravar os olhos no discurso. O resto é peta…é peta, Dona Jô.


REFERÊNCIA

FREIRE, P. Ação cultural para Libertação. In Paulo Freire, Ação Cultural para Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 49.

Imagem de destaque: StockSnap / Pixabay

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