Os militares e o neoliberalismo

Antonio Carlos Will Ludwig*

Desde as últimas décadas do século passado a humanidade encontra-se inserida em um cenário bastante diferente daquele que esteve em vigor antes desse período. Com efeito, o atual momento da civilização é caracterizado pela forte presença da globalização, do neoliberalismo e da pós-modernidade. Apesar de tais fenômenos serem dotados de traços específicos existem elementos que os unem. Esta tríade, no desenrolar do tempo, vem influenciando de modo ostensivo todos os setores da vida em sociedade. Por causa disso têm recebido uma constante e grande quantidade de críticas oriundas de dirigentes de organizações, de intelectuais e de políticos de várias partes do mundo. Manifestações sociais contra a globalização e o neoliberalismo acontecem corriqueiramente desde os seus aparecimentos devido aos efeitos deletérios que estão provocando no ambiente social. Em se tratando do neoliberalismo, não se percebeu, no âmbito militar, a presença de reações adversas notórias à sua implantação e consequentemente em relação ao seu avanço. Esta complacência deve ser resultante de ocorrências específicas que se manifestaram em momentos apropriados.

A Inglaterra e os Estados Unidos da América do Norte constituíram o ponto de partida da epopeia neoliberal. Na Inglaterra o governo de Thatcher procurou reduzir os investimentos em assistência social, em amparo aos desempregados e em programas de treinamento e educação. Logo no início de seu mandato buscou também diminuir as despesas com a previdência social e com os gastos pertinentes à habitação tendo em vista suavizar o peso do setor público na economia do país. Entretanto, tais medidas não provocaram respostas contundentes por partedos militares britânicos, talvez devido aalguns importantes eventos..

O surgimento do neoliberalismo neste país não foi fruto de uma ruptura com o passado e sim decorreu de uma alteração no modelo econômico liberal vigente até então. A pesada ofensiva que Thatcher disparou contra o Welfare State não foi capaz de desmontar os programas mais relevantes a ele associados, ou seja, as políticas educacionais, os projetos relativos à área da saúde, o seguro desemprego e as pensões destinadas aos idosos. Sua ação reducionista não atingiu as Forças Armadas, ao contrário, elas foram beneficiadas com um expressivo aumento orçamentário com base na justificativa da Guerra das Malvinas. Por sua vez o tradicional e realçado prestígio da corporação bélica no âmbito da sociedade ganhou mais relevo ainda com a vitória sobre os argentinos.

Nos Estados Unidos da América do Norte Reagan colocou em prática a mesma receita econômica utilizada por Thatcher quanto à redução dos investimentos na área social, porém, implementou uma diminuição dos impostos a favor dos segmentos mais abastados e elevou as taxas dos juros. Com tais medidas conseguiu conter a espiral inflacionária, controlar a oferta da moeda no mercado e criar dezenas de milhões de novos empregos. Também elevou significativamente os gastos militares e lançou-se numa corrida armamentista para solapar a economia soviética e demolir o regime socialista. De forma semelhante ao caso inglês também não houve um rompimento com o período anterior uma vez que o regime econômico vigente até então era o liberalismo de cunho keynesiano. O sucesso obtido por Reagan na área econômica ao lado do triunfo alcançado em cima dos russos e dos pesados investimentos aplicados no setor

bélico devem ter contribuído bastante para evitar o aparecimento de qualquer atitude de antipatia por parte dos militares em relação ao neoliberalismo emergente.

Na Suécia o estabelecimento do neoliberalismo foi mais rigoroso. Sua instituição começou nos primórdios da década de noventa do século passado, ainda no governo comandado pelos sociais democratas que assumiram o poder nos anos trinta e instauraram o Estado de Bem Estar mais avançado do mundo. A partir de então foram excluídas todas as regulamentações estatais e fixados significativos cortes nos subsídios da habitação, das creches e dos transportes. Ocorreu ainda um abrandamento das taxas de impostos sobre os mais ricos e todo o setor público encaminhou-se rumo à privatização. Nos primeiros anos desta década manifestou-se um período de recessão, um aumento do desemprego e uma elevação do nível inflacionário. Passado este momento o país começou a apresentar um crescimento sustentável e uma visível dinamização da economia os quais passaram a garantir o Welfare State. O percentual do produto interno bruto relativo aos investimentos na área militar atingiu a maior elevação comparada às décadas anteriores e permaneceu com pequenas oscilações no decorrer do tempo.

O avanço do neoliberalismo na Suécia, por ter ocorrido de forma muito marcante, conseguiu penetrar no interior das Forças Armadas. Esta inserção tornou-se evidente por ocasião da realização em 2018 do exercício militar denominado Viking 3 voltado para a concretização de manobras que visaram aperfeiçoar ações destinadas ao cumprimento de missões de paz bancadas pelas Nações Unidas e do qual os sodados brasileiros fizeram parte. Toda a organização desse evento, baseada em projetos e criação de cenários, foi orientada pelos princípios neoliberais de cooperação, transparência, responsabilização e auditoria.

Embora tal modo de agir possa parecer inusitado não deve causar estranheza porquanto dois aspectos básicos aproximam os militares aos neoliberais. Um deles é pertinente ao estilo de gestão o qual agrega dois conjuntos de pessoas distintos e intercambiáveis. O primeiro é minoritário e constituído pela autoridade máxima e seus assessores diretos. O segundo é majoritário e composto por diversos subgrupos escalonados. Cabe ao primeiro planejar as atividades e controlar a sua execução e ao segundo executá-las de maneira descentralizada e autônoma. O outro diz respeito à meritocracia que leva em conta as qualidades e competências individuais como critério exclusivo para a ocupação de cargos e funções no âmbito da sociedade.

No Egito a implantação do neoliberalismo chocou-se com o modelo econômico vigente até então que se sustentava no princípio islâmico de justiça social e do cumprimento de obrigações comunais sem se opor à existência da propriedade privada e da acumulação de riqueza. Em confronto a este modelo, no início da década de noventa do século passado, Hosni Mubarak foi o responsável pela promoção do desenvolvimento neoliberal. Após ter conseguido um empréstimo do FMI privatizou inúmeras empresas públicas, flexibilizou os controles burocráticos e estabeleceu um rígido controle do déficit fiscal para atender às exigências desta instituição. Complementou suas ações com o desmantelamento das cooperativas, a interrupção dos subsídios agrícolas, a retirada do Estado na fixação do salário mínimo e do ajuizamento pertinente aos conflitos entre patrões e empregados. Um significativo aporte de investimento estrangeiro se encaminhou ao país na década posterior o qual garantiu um crescimento anual bastante alto, porém não foi suficiente para eliminar o desemprego, o subemprego e o elevado percentual da população que vivia abaixo da linha da pobreza.

Embora não se saiba os números do orçamento das Forças Armadas egípcias, porque ele é secreto por força de lei, é do conhecimento geral que desde há muitas décadas elas figuram entre as maiores do mundo. Este posicionamento é um indício firme de que o investimento nelas tem sido bastante elevado. Além disso, sabe-se também que as mesmas vêm recebendo

anualmente centenas de milhões de dólares dos Estados Unidos e que muitos militares egípcios a ele se dirigem para completar seus estudos. Outra ocorrência relevante é a de que os militares do Egito são capitalistas genuínos, pois desde há muito tempo, encontram-se presentes em quase todos os setores econômicos do país tais como na fabricação de veículos, nas empresas de construção, no comércio de inúmeros produtos e nos empreendimentos turísticos. Por sua vez o cidadão egípcio admira demasiadamente a carreira militar pelo prestígio que possui e pela ascensão social que proporciona.

Em nosso país as decisões tomadas pelos governantes relativas ao processo de institucionalização do neoliberalismo foram bem singulares. Observe-se que de modo semelhante ao caso egípcio a sua implantação se deu na forma de uma ruptura haja vista as várias décadas anteriores de forte presença do Estado na economia. O primeiro e cauteloso passo foi dado por Sarney com a privatização de algumas empresas. O segundo foi dado por Collor que propôs uma alta nos impostos, o confisco da poupança e um ensaio de abertura do mercado nacional. Por sua vez Itamar Franco executou um vistoso programa de privatização que incluiu grandes e importantes empresas nacionais, o qual continuou com o presidente Fernando Henrique Cardoso. Durante os governos de Lula e Dilma o neoliberalismo permaneceu em estado latente. Na gestão de Temer aconteceu a reforma trabalhista e o estabelecimento do teto do gasto público. Com Bolsonaro a reforma da previdência está caminhando a todo o vapor, a reforma trabalhista encontra-se em processo de aperfeiçoamento com a medida provisória alcunhada de liberdade econômica e as ações de bloqueio do orçamento continuam firmes. Está sendo planejado ainda um vasto programa de privatização que promete não poupar quase nenhuma empresa estatal restante.

No decorrer desse processo de institucionalização do neoliberalismo as Forças Armadas não ficaram de fora. Com efeito, durante os governos de Sarney, Collor e Franco os recursos destinados a elas permaneceram bem aquém dos alocados pelo governo seguinte. Face ao estado de penúria e cautelosos em relação ao prestígio social ascendente os militares resolveram reagir para evitar o seu aprofundamento. Como resultado das pressões exercidas, na presidência de Cardoso, conseguiram obter um aumento das gratificações salariais, evitar cortes no orçamento e lograr uma modesta verba para a modernização do armamento. No atual governo de Bolsonaro as Forças Armadas já foram alvo de um elevado bloqueio de verbas. Encontra-se tramitando no parlamento um projeto de reforma previdenciária que deverá provocar alguma perda nos vencimentos. Em contrapartida eles já estão pleiteandouma reestruturação da carreira.

O nacionalismo, um dos principais valores ostentados pelos militares, consumiu um longo tempo para ser internalizado por eles e esta internalização dependeu muito da intervenção do Estado na economia. O ponto de partida se encontra no governo de Getúlio Vargas quando ele transformou o Estado em um organismo forte, voltado para a ingerência na esfera produtiva com vistas a proteger a indústria nacional e também para promover um mercado interno e assumir o papel de investidor principal.. O ideário nacionalista perpassou o governo de Juscelino onde imperou a ideologia nacional desenvolvimentista que não anatematizou a entrada do capital estrangeiro. Durante os vinte anos de governos militares foram usadas campanhas ufanistas destinadas a conquistar a simpatia da população e ajudar no empenho por eles dedicados ao desenvolvimento do país. No transcurso destas décadasforam criadas muitas empresas estatais e o auge desta criação se deu nos vinte anos de governos militares. A paulatina retirada do Estado da economia juntamente com o programa de privatização das empresas nacionais iniciado logo após a entrega do governo aos civis, incrementado nos anos que se sucederam e atualmente com a previsão de liquidar quase todas elas pode estar contribuindo para o enfraquecimento do sentimento nacionalista dos militares e talvez até para o seu progressivo desaparecimento em data vindoura.

 

*Professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutor em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar.


Imagem de destaque: Fernando Frazão/Agência Brasil

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