O Vírus interroga as instituições

Eugênio Magno

Mais do que qualquer curso, disciplina e/ou formação acadêmica, a vida é pedagógica. Ainda que de forma cruenta, nos trás seus ensinamentos e nos interroga sobre o nosso destino, o futuro que estamos construindo e nos impõe – neste momento específico em que vivemos –, uma pausa para reordenar o rumo das coisas. Muito embora a letalidade da pandemia engendrada pela COVID-19 seja um fato irrefutável, a generosidade da vida no planeta para com os humanos é imensa e nos oferece agora a chance de sermos, fazermos e vivermos de forma diferente da que até então temos vivido. Resta saber se iremos tirar algum proveito desta lição. Frei Beto gosta de dizer que “é melhor deixar o pessimismo para tempos melhores”, mas diante das posições de algumas lideranças de vários países, como é o caso dos integrantes do governo brasileiro, é difícil ser otimista no atual momento histórico.

Devemos salvar a vida humana ou a economia, protegendo multimilionários e construindo riquezas sobre cadáveres? Às vezes é necessário que cheguemos ao pico de uma excepcionalidade como esta da pandemia provocada pelo coronavírus para nos darmos conta do quanto a vida humana vem sendo desvalorizada pelo próprio homem.

Em tempos de livre circulação de informações, das mais balizadas àquelas para as quais não existe sequer qualificação, é importante que tenhamos o bom senso de nos ancorarmos em reflexões sóbrias e equilibradas para, a partir desses referenciais, formarmos e emitirmos opinião. Se não, vejamos: são notórios os ataques sofridos pelas democracias, orquestrados por fake news produzidas e difundidas em massa, especialmente pelas redes sociais, gerenciadas por grupos de mídia internacionais e ideólogos hiperneoliberais e anarcocapitalistas que se utilizam justamente de prerrogativas democráticas, como a liberdade de expressão, para fazer seus proselitismos. Entretanto, essas estratégias comunicacionais abjetas, direcionadas para a conquista de corações e mentes da grande massa manipulável, têm encontrado uma dura resistência por parte daqueles que pensam e estão engajados na construção de um mundo melhor.

Na penúltima semana de abril entrou em circulação, A Cruel Pedagogia do Vírus, o mais novo livro do pensador Ibero-Americano, o português, Boaventura de Sousa Santos. Trata-se de uma obra curta da Editora Almedina (Coimbra, Portugal, abril, 2020). Aqui no Brasil, o ensaio está disponível exclusivamente em e-book, como um dos volumes da coleção Pandemia Capital, da Boitempo Editorial ao custo de – apenas – cinco reais. No livro, Boaventura argumenta, de forma didática, sobre os desdobramentos da pandemia do coronavírus (COVID-19) em uma conjuntura em que se somam várias outras crises, entre elas as de ordem econômica e política. Nas poucas páginas dos cinco capítulos do ensaio, Sousa Santos problematiza uma série de questões que se deslindam em torno da crise pandêmica, para além do factual. Tudo muito condensado, mas com indicações claras e fortes das várias feridas políticas e socioambientais mal curadas que vão ficando cada vez mais visíveis a olho nu, com o avanço da pandemia.

Embora convencido de que os fins não justificam os meios, o autor chama a atenção para o fato de que apesar das consequências negativas do arrefecimento da economia, existem também as positivas. E toma como exemplo, o fato de um especialista em qualidade do ar, da agência espacial estadunidense (NASA) ter afirmado que nunca houve uma diminuição da poluição atmosférica numa área tão vasta do planeta, como neste período de pandemia global. Diante dessa e de outras constatações e, dentre as muitas interrogações postas pelo Vírus, segundo Boaventura de Sousa Santos, destaco as seguintes: “Quererá isto dizer que no início do século XXI a única maneira de evitar a cada vez mais iminente catástrofe ecológica é por via da destruição maciça da vida humana? Teremos perdido a imaginação preventiva e a capacidade política para a pôr em prática? A democracia carece de capacidade política para responder a emergências?”.

A problemática central enfocada pelo autor gira em torno do debate das ciências sociais sobre qualidade e verdade das instituições em momentos de normalidade e em situações excepcionais – em que momento se pode conhecê-las melhor? A tese de Boaventura é de que tanto uma quanto a outra situação permitem conhecimento revelando, naturalmente, coisas diferentes. Daí ele parte para a enumeração de pontos que o ajudam na problematização das revelações decorrentes do coronavírus.

No entender de Boaventura, a pandemia apenas agrava uma situação de crise que a sociedade mundial vem sendo sujeitada a décadas, com o avanço do neoliberalismo. Mas este agravamento da crise também faz cair por terra a ideia de que não existe alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo. “Como foram expulsas do sistema político, as alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela porta dos fundos das crises pandêmicas, dos desastres ambientais e dos colapsos financeiros”, argumenta Sousa Santos. Este é mais um dos imperativos que o Vírus nos dá a (re)conhecer. Assim como também podemos afirmar em uníssono com o autor que “a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados, mas mesmo assim cria-se com ela uma consciência de comunhão planetária de algum modo democrática”. Mas, de uma democracia manca, uma vez que o darwinismo social praticado pelos chamados países desenvolvidos, em períodos de exceção como o que vivemos demonstram uma total contrariedade ao processo de avanço civilizatório.

É clara a vulnerabilidade ao vírus por parte de uma grande maioria da população mundial que sempre esteve entre os “grupos de risco” devido a precariedade da vida a que sempre foram subjugados.

Até a indicação preventiva de maior consenso mundial para trabalhar em casa, em autoisolamento é impraticável, para vários segmentos profissionais, aqueles que fazem os serviços essenciais e os trabalhadores informais e precarizados que são obrigados a escolher entre ganhar o pão diário ou ficar em casa e passar fome. Boaventura também nos chama a atenção para o fato de que “as recomendações da OMS parecem ter sido elaboradas a pensar numa classe média que é uma pequeníssima fracção da população mundial”.

O Vírus expõe as vísceras de nossa sociedade, não somente as do capital, dos estados nacionais, dos governos, da política, das forças armadas e dos sistemas de saúde, mas de todo o conjunto das instituições. De modo particular, pensando na parte que nos cabe deste latifúndio: desvela também as entranhas da mídia, da academia, da educação, da tecnologia, do pensamento e das ciências. É numa hora como esta que se valida ou não todos os estudos, as pesquisas e a produção intelectual. Afinal, o que sabemos e o que podemos fazer com o que sabemos, para minimizar os impactos de uma situação tão crítica e letal como esta?


Imagem de destaque:  Fusion Medical Animation / Unsplash

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