O tempo da vida e o tempo do capital

Natascha Stefania Carvalho De Ostos*

No início da década de 1980, o pensador Norbert Elias redigiu um ensaio que foi publicado em português com o título de A Solidão dos Moribundos. O texto levanta importantes reflexões sobre o envelhecimento e a morte na sociedade ocidental contemporânea. O autor argumenta que envelhecer e morrer têm sido processos cada vez mais solitários, indicando que o envelhecimento provoca “uma mudança fundamental na posição de uma pessoa na sociedade, e, portanto, em todas as suas relações com os outros” (p. 83, 2001). No Brasil, segundo a pesquisa do IBGE – “Características Gerais dos Domicílios e dos Moradores 2018”, entre os anos de 2012 e 2018, a população com mais de 65 anos de idade cresceu 26%. Porém, a simples constatação de que o número de idosos aumenta no país não é suficiente, pó si só, para operar uma mudança de mentalidade sobre o envelhecimento e a morte.

Ao longo do século XX, as comunidades tradicionais, estruturadas em torno de fortes vínculos de solidariedade entre parentes e vizinhança, foram se desagregando em razão da migração para os centros urbanos e da disseminação de um novo estilo de vida, pautado no consumo e na valorização da figura do indivíduo, em detrimento dos laços coletivos. Na modernidade capitalista os processos econômicos ocorrem em um ritmo acelerado e ininterrupto, disseminando um sentimento de urgência com relação à passagem do tempo. Nesse quadro, se enaltece tudo aquilo que é novo e atual, constituindo o que alguns estudiosos designam como presentismo, fenômeno onde os tempos passado e futuro se esgarçam, em favor de um presente que se eterniza na valorização do imediato. Assim, pessoas e saberes que pareçam destituídos de uma “utilidade” instrumental instantânea, principalmente para a produção econômica, são tidos como obsoletos e descartáveis.

Não é de se estranhar, portanto, que em tempos de Covid-19, e diante da constatação de que o vírus é mais perigoso para os idosos, ouçamos propostas que defendem diversos graus de “sacrifício” dos mais velhos em prol da sociedade dita produtiva, onde os corpos precisam ser ágeis e rápidos, e toda fragilidade “atrasa” a geração do lucro. De forma similar, há uma grande impaciência com a velocidade de resposta da ciência à crise da pandemia. Esse desconforto não se refere apenas ao compreensível desejo de poupar vidas, mas também à vontade de retomar a economia a qualquer custo. Os protocolos científicos, a experimentação, o debate e a revisão entre os pares, são vistos como entraves que atrasam o retorno da vida “normal”, e não como parte constitutiva do fazer científico, o que evidencia um descompasso entre o tempo da (boa) ciência e o ritmo acelerado do capital. Medicamentos sem eficácia e segurança comprovadas são alçados à condição de recursos milagrosos, pelo simples fato de estarem disponíveis para uso imediato, prometendo poupar tempo – mas certamente não vidas –, de forma que a roda da economia volte a girar.

O isolamento social, que evita a disseminação do contágio, impõe a quebra do ritmo da produção, das transações financeiras e do consumo. E a proposta, sem base científica, de promover o isolamento vertical da população (afastando do convívio apenas os mais vulneráveis à doença, como os idosos), é uma tentativa de isolar somente os corpos “inúteis” para a cadeia produtiva. Não é o caso de negar o dano social causado pela paralisação das atividades econômicas, principalmente para os segmentos vulneráveis da população. Mas o fato é que a pandemia de Covid-19 demonstrou que, em certas situações, para o sistema capitalista, a morte pode ser melhor “negócio” do que a vida, desde que ela seja rápida e não atrapalhe a geração de lucro.

Assim, as forças de exploração econômica no mundo globalizado impõem uma aceleração da existência que, por vezes, é incompatível com processos de manutenção da própria vida. Por exemplo, o “tempo da natureza” é lento diante das exigências de uso intensivo dos recursos naturais, e se uma árvore nativa pode demorar vinte anos para alcançar a plenitude, a solução dada pelo sistema produtivo é investir em plantações de eucalipto, de crescimento rápido, mesmo que isso destrua o solo, esgote os cursos de água e espante a fauna local. Do mesmo modo, quando o conhecimento científico se coloca a favor da vida e da saúde, ele precisa seguir etapas que garantem limites mínimos de segurança, e a aceleração, sem critério, desse processo, pode resultar na morte de pessoas. Por último, o envelhecer e o morrer, que exigem ritmos mais lentos, são tidos como entraves para a economia, pois deslocam o foco da produção (rápida) e do lucro, para ações de cuidado (pausadas e não produtivistas).

O compositor Caetano Veloso, na canção Oração ao Tempo, assim se referiu ao tempo:

“Compositor de destinos

Tambor de todos os ritmos

Tempo, tempo, tempo, tempo

Entro num acordo contigo”.

Ao fim da atual pandemia, resta saber qual tipo de “acordo” a nossa sociedade deseja fazer com o tempo.

* Historiadora – Pós-doutoranda da Fiocruz Minas

Referência:

ELIAS, Norbert. A Solidão dos Moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Alex Boyd / Unsplash

 

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