O privilégio da quarentena em um país de desigualdades sociais

Renata Duarte Simões

No Brasil, nas últimas décadas, cresceu de forma acelerada o mercado de trabalho informal, resultado do desemprego que se agravou com a crise de 2015-2016, contabilizando, atualmente, quase 12 milhões de desempregados, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse quadro ainda pode se agravar drasticamente, somando mais 8 milhões de desempregados, elevando esse número ao total de 20 milhões, dependendo da duração da pandemia do novo Coronavírus.

Para evitar a propagação do Convid-19, nos países atingidos, destacadamente China e Itália, foram adotadas medidas de restrição à circulação consideradas imprescindíveis para evitar a disseminação do novo Coronavírus. O Ministério da Saúde anunciou medidas para conter a propagação do Covid-19 no Brasil, entre as quais destacam-se o fechamento do comércio, o distanciamento social e a quarentena, para aqueles que apresentem suspeita de contaminação.

Contudo, tais medidas precisam ser amplamente pensadas e debatidas no Brasil, país com expressiva parcela da população que vive em condição de pobreza e extrema pobreza. É preciso considerar que muitos brasileiros dependem do salário mínimo para sustento da família e que não conseguem fazer qualquer reserva a que possam recorrer em momentos de crise, o que os impede de se afastarem de suas atividades profissionais.

Também é preciso considerar que com a expansão do mercado de trabalho informal – cerca de 38 milhões de pessoas estão na informalidade segundo o IBGE, ganharam espaço os modernos contratos flexíveis, que não oferecem qualquer direito à licença saúde, o que leva as pessoas a trabalhar mesmo que estejam doentes. A adoção do distanciamento social ou da quarentena torna-se ainda mais complicada para o trabalhador informal, que depende da renda da atividade diária para sobreviver, e para aqueles que prestam serviços temporários sem qualquer garantia ou direito trabalhista.

Agrava-se a situação daqueles que moram nas periferias, em que as condições de vida são precárias, marcadas pela falta de saneamento básico, carência alimentar, ausência de serviços de saúde. Para esses sujeitos, que vivem, muitas vezes, em ambientes insalubres, até mesmo a água e o sabão, apontados como fortes aliados no combate ao vírus, são de difícil acesso e aquisição. Álcool gel, máscaras, luvas são artigos de luxo, inviáveis para os empobrecidos que mal tem dinheiro para a compra do alimento que sustenta.

Os moradores de rua também são alvo fácil, por que a eles nem mesmo a higiene básica está garantida. Sem acesso a banheiros não é possível tomar banho, sem água não é possível lavar as mãos, higienizar as roupas, além da dificuldade de se conseguir alimento, dado que não se tem a quem pedir porque a população não sai às ruas. Os sujeitos de rua fazem parte do grupo de risco por viverem em locais abertos, sem possibilidade de higienização, expostos a qualquer tipo de vírus.

Na contramão das necessidades do povo, o presidente da República editou, na noite de domingo, 22 de março de 2020, uma Medida Provisória – MP 927 – “que dispõe sobre as medidas trabalhistas para o enfrentamento do estado de calamidade pública”. Com a finalidade de desonerar o empregador, a MP possibilita a suspensão de contrato e de salários por até 4 meses, conferindo ao empregador e ao empregado o poder de “celebrar acordos individuais por escrito”. Assim, flexibiliza a jornada de trabalho e a remuneração, possibilitando, ainda, suspender as exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho.

A MP foi fortemente criticada e o trecho que trata da suspensão de contrato por quatro meses sem pagamento de salário foi revogado. A nova MP está sendo editada, prevendo a suspensão dos contratos, com cortes de pagamento de até 50%. A ideia é que, com os salários cortados pela metade, o governo pague 25% e o empregador os outros 25% para o trabalhador. Em setores mais afetados, como bares e hotéis, é possível que o governo permita um corte maior do salário, prejudicando ainda mais o trabalhador.

Não bastasse a MP 927, o presidente, de maneira irresponsável, solicitou aos brasileiros, em pronunciamento nacional no dia 24 de março de 2020, que retornem às atividades profissionais, que levem os filhos à escola e que voltem a transitar nas ruas, contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O que não foi compreendido por muitos é que o vírus não respeita hierarquias sociais e não se limitará a matar os empobrecidos. No mais, as classes média e alta precisam dos trabalhadores no dia a dia. A empregada que limpa a casa da patroa, a baba que cuida da criança, o motorista que leva os filhos do patrão à escola, todos estarão em contato com o Covid-19 no ônibus, nas comunidades aglomeradas e, se não forem cuidados, propagarão o vírus. É preciso cuidar dos empobrecidos, dos trabalhadores, para que a mortalidade provocada pelo vírus seja reduzida.

A economia é articulada, integrada e medidas que sustentem a renda são necessárias para evitar o agravamento da crise, pois a renda é que movimenta o mercado, uma das principais alavancas do PIB é o consumo da família. Garantida a renda e a sobrevivência, seria possível rearticular, progressivamente, as cadeias de produção e fornecimento. Com a MP, não só os trabalhadores seriam gravemente prejudicados, mas também os pequenos e médios empresários e as empresas em geral.

Em uma sociedade integrada, em que dependemos uns dos outros para sobreviver, precisamos aprender a cuidar de quem está ao lado, a garantir os direitos dos que nos rodeiam. Enquanto aqueles que nos governam não souberem o que fazer para proteger toda a população, enquanto se mantiverem mais preocupados com a economia do que com o povo, enquanto não se organizarem para a criação de políticas sanitárias preventivas, para a estruturação de um sistema de saúde seguro e universal, assim como para a elaboração de medidas de proteção não só às empresas, mas também aos trabalhadores, estaremos correndo o risco de viver uma tragédia de proporções inestimáveis. Chegou o momento de pensar no outro para salvar a própria vida!


Imagem de destaque: A Rodoviária do Plano Piloto.Foto: Isac Nóbrega/PR

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