O Milagre na Cela 7: as outras salas dos processos educativos.

João Victor da Fonseca Oliveira

 Lição de casa: Assistir ao filme.

Comentário do drama turco “O milagre na cela 7”, dirigido por Mehmet Ada Öztekin, lançado em 2019, na Alemanha. Este texto é uma experimentação. Aqueles outros textos que tecemos cotidianamente em nossas aulas também são. Nas experimentações, construímos formas de (re)existência que tecem, com suas maiores e menores possibilidades, o sujeito da experiência. Este texto é sobre uma sala que ressurge dentro das celas – e fora da escola.

1 – O filme não é sobre o bom e o mau – ou o mal e o bem -, mas sobre a capacidade (que todos temos dentro da nossa suposta “normalidade”) de se aliar ao mal, de ser mau, sobretudo quando temos poder.

2 – A reflexão passa pelas várias faces do autoritarismo. Um ditador também pode ser um ótimo pai. A contradição aparente denuncia a banalidade do mal. O “monstro” é feito de escolhas cotidianas, em busca de um suposto “bem”, egoísta e particular, que busca vinganças para sustentar sua incapacidade de assumir perdas e da tentativa frustrada de extensão do próprio luto. A vítima, nesse sentido, passa a ser menos importante do que o culpado – e o filme persegue essa narrativa). O ditador pode se manifestar diante da incapacidade de aceitar a perda e a negociação (seja do que for), aliado à mediocridade de um homem frágil em sua masculinidade, tóxico, sustentado pelos signos do poder. Confundem autoridade com opressão, produzindo o substrato perfeito do patriarcado. O “comandante” prende o objeto do seu ódio, vigia e pune, mata lentamente o outro – culpado por suas dores -, porque não tolera sua própria morte interior.

3 – As alegorias do filme (a mochila, a loucura e a prisão) refletem a falência do capitalismo que impede que todos acessem aquilo que são continuamente obrigados a desejar – imperativo do gozo. Quem sabe pior. O sistema se mantém na negação/interdição do desejo do outro, ao mesmo tempo que o impõe o seu cultivo desviante: os marginalizados mesmo tendo arrecadado dinheiro, sob esforço, não conseguem chegar primeiro. Afinal, essa é a lógica do consumo: o valor de algo está atribuído àquilo que poucos podem ter, ao mesmo tempo em que são seduzidos a desejar. A essa armadilha não se excluem as crianças, nem os pobres, talvez aí esteja seu sentido mais perverso.

4 – O mundo e a liberdade do campo versus o clima ditatorial da cidade militarizada se encontram na escola. Em função dela, diferentes mundos podem se encontrar, não sem constrangimentos e violência. Contudo, é também no caminho para a escola (ou para a casa) que é possível sonhar, à despeito daquilo que os outros pensam sobre os “desajustados” (seriam loucos?). A esperança de um futuro possível também pode estar na tutela de uma professora, a mesma que anuncia e acolhe a dor, e abraça junto com Ova a esperança.

5 – Na marcha e no tom da ditadura, não há espaço para a autenticidade. O ritmo do corpo é tolido a uma só repetição. Fazer todos semelhantes (e longe de serem iguais) traduz a tentativa de apagar a diferença, e a transformação criadora que ela pode gerar. Os canhões e as armas ceifam a liberdade. Aliados, necessariamente, àqueles que os acionam.

6 – O Tempo da oração (aquele que garante o enforcamento na hora exata) e o da vida coletiva (aquele tempo da cela que permite o milagre, tornado experiência nas mesas de confraternização, e nas conversas despretensiosas) marcam o sucesso de um final exitoso. O arrependimento e a saída comunitária são as únicas possibilidades diante da opressão, do ódio e da barbárie. O arrependimento que leva à forca é o mesmo que permite o reencontro com a liberdade. Nesse caso, mesmo a dor mais cruel é libertação. Porque liberta os outros. Porque se faz em comunhão.

7 – A verdade triunfa como salvação, porque existiu quem, dentro do regime, dissesse “não”. A verdade chega aos outros (ainda que seja ignorada pelos tribunais) porque o desertor amarra seu calçado no asfalto, atrás do plano onde nascem as flores, certo de sua escolha, esconde as armas, renuncia ao poder e opta por outro destino, de onde pode ver a liberdade – e o mal contra ela. A verdade triunfa, mesmo que alguns de seus portadores percam a própria vida pelas mãos da opressão. Talvez a verdade não esteja na mochila, nem na prisão, mas na loucura: o milagre se aprende no amor que ama porque sente, confia e se entrega porque compartilha. Também porque a avó – e os que nos antecedem – tem também sua palavra sobre a vida e a fazem crer. Talvez, ainda, só os loucos sejam capazes disso. O milagre não é na cela 7, mas na vida dos que foram capazes de resistir porque confiaram na doçura de uma criança, na palavra dos irmãos, e no “lingo lingo”” que nos faz ouvir o desejo mais profundo (longe de qualquer oferta de vitrine) de fazer o mundo começar novamente. O mundo de cada um, ali onde moram o encontro e a felicidade, onde estão os nossos e, sobretudo, os outros.

Senão na sala, talvez ainda estejamos na cela – que também vale pelo que nos ensina. Ainda que seja rabiscando a árvore na parede. Ainda que ninguém a veja. Ainda que ninguém entenda. Mesmo que seja loucura: outro mundo é possível!


Imagem de destaque: O milagre na cela 7 – Netflix/Distribuição

 

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