O herói improvisado

plagas des/oportunas, covas desencavadas –

Ivane Perotti

“Querido filho pranteado

Da fortuna e do acaso

Avante um por todos

E todos por um

Ficam das lutas ao longe

Duas medalhas pregadas em peitos de bronze

E as bandeirinhas e as rifas

O foguetório e a fanfarra

Meio velório e meio farra”

(João Bosco/Aldir Blanc)

Amarelada acordou a manhã de sol forte e vento frio. Friinho. Não friozinho. Friinho era como o Valentino gostava de falar. A boca abria um túnel de luz e graça enquanto os ombros encolhiam-se em exagero de sensação. Amava Elis Regina desde cedo. Muito cedo, em tempos de música que ele chamava de “espelho da história”. Era um pedreiro de mão cheia de técnica e vontade, herdadas do pai, homem famoso na cidade pelas construções de tijolo e cimento sem nunca ter aprendido a escrever o próprio nome.

Valentino desconhecia reclamações. Nascera com a supra renal abençoada. Não que ele soubesse disso, mas não havia tempo feio para o pedreiro de mãos calejadas. Acreditava que as pessoas nasciam em lugares pré-determinados contrariando a vontade do nascido. Teria desejado nascer rico, em berço de engenharias, mas recebera o tijolo em massa ainda mole? Que fosse!

                _ Simbora construir esta nação! – Valentino puxava o coro:

_ Da fortuna e do acaso/Avante um por todos/E todos por um.

Alguns colegas só balbuciavam pedaços de palavras. Valentino era ruim de gosto musical e a voz não ajudava –  ainda assim, acompanhavam-no, por diversas razões.

                _ Ficam das lutas ao longe… – e o coração do pedreiro enchia os olhos de entendimentos.

Cantava frases da canção interpretada por Elis Regina Um por todos e todos por um – composição de João Bosco e Aldir Blanc, 1976 (que, por uma triste coincidência, faleceu do vírus fatal/19 em 04 de maio de 2020, no mesmo dia em que Valentino descobriu-se um invisível). Acordara com febre alta, o homem prático. Dispensara preocupações até a hora do almoço. Mas corpo que tem vida reclama da sorte. Só no trabalho, não há jogada:  licença é cabeça-cortada. Atrasar uma obra assemelha-se a sair de circulação. O mercado imobiliário tem pressa. Os patrões têm prazos e carregam as broncas em podcast de longo alcance.

No meio da tarde, Valentino já não tomava decisões. Foi levado a um PS pelos colegas de trabalho. Carregado ele aguardou, carregado ele saiu. Foi levado para a casa da mãe, uma senhora que saía dos setenta anos acreditando na justiça divina e implorando pela justiça dos homens.

           _ Tô bem, mãe. Duas medalhas pregadas em peitos de Bronze/

_  Fio, ocê tá variano. Se acarme.

          _ E as bandeirinhas e as rifas/O foguetório e a fanfarra…mãe, eu tô aqui?

          Enquanto Valentino lutava a própria luta, os amigos buscavam por recursos para sobreviver cada qual em seu lugar. Mas as engrenagens políticas no país daqueles nobres trabalhadores separam as pessoas por endereço de nascimento. Ninguém assume. A maioria some. Discriminação em protocolos consensuais brotam de estratégias produtivas para manter os sujeitos desvalidos, sem identidade, sem sonhos, sem desejos de emancipação.

          _ Mãe, eu não quero meio velório. Quero meio farra.

_ Fio, não fala ansim…

          Valentino superou o que alguns, criminosamente chamaram de “gripezinha”. Nas rodas daquele sistema monstruoso, aqueciam-se ideias de ódio contra quem pensasse além das porteiras dos fatos. E agiam, os controladores, propagando informações falsas, manipulando o povo que, levado à sorrelfa, não diferenciava as agruras naturais da vida da vida de agruras tramada na cinta de umbigos bem alimentados.

           O pedreiro voltou, refeito:

_ Do ventre chão da terra mãe – Valentino não aceitou o desconto dos dias em que estivera doente, muito doente. Era direito e direito garantido como um legado.

_ Querido filho pranteado…

          _ Nasce o herói improvisado. Ô, gente boa, vocês já cansaram do improviso?

_ Manera aí, mano!

_ Manero, nada! Quero aparar as covas neste campo tão minado! Avante/ um por todos/E todos por um.

          P.S. este texto é dedicado a Aldir Blanc, compositor e escritor com vastíssima literatura neste Brasil de alguém, morto pela Covid/19 em 04/05/2020, e que dependeu do clamor de amigos e artistas para ocupar um leito na rede pública de saúde.


Imagem de destaque: Priscila Paula

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