O diálogo e a amorosidade como antídotos à “vara da disciplina”

José Heleno Ferreira*

Em 1884, Machado de Assis escrevia o “Conto de Escola” no qual narrava um episódio em sala de aula em que dois meninos eram castigados pelo professor com a palmatória. Os meninos eram Raimundo, filho do mestre-escola, e Pilar. O primeiro oferece ao colega uma moeda para que ele lhe ensinasse a lição, buscando, assim, escapar da fúria do pai. A transação entre os meninos é denunciada por outro colega, de nome Curvelo, e as duas crianças são castigadas, diante da turma, com doze bolos nas mãos. Não ficamos sabendo o que acontece, depois, com o filho do mestre-escola, mas Pilar torna-se cada vez mais arredio, procurando, sempre que possível, ausentar-se da sala de aula. Com fina ironia o Bruxo do Cosme Velho termina o conto com o menino Pilar dizendo que a escola lhe ensinou as lições da corrupção e da delação.

Mais de um século depois, deparamo-nos com o Ministro da Educação, o Pastor Milton Ribeiro, fazendo a apologia da violência e do uso da “vara da disciplina”. A defesa dos castigos corporais e da justiça com as próprias mãos encontram terreno fértil em uma sociedade marcada por uma crise sanitária, política e econômica como a que vivemos no Brasil atualmente. Diante da falta de perspectivas e das dificuldades para enfrentar os conflitos, muitos e muitas aderem ao discurso violento e agarram-se à ideia de que a força bruta é a única saída para resolver os problemas sociais e afetivos. Os frutos perversos dessa longa história do culto à violência são conhecidos. O horror do nazifascismo, o apoio a ditaduras civis e ou militares, no Brasil e em muitas outras nações ao redor do mundo, foram construídos com base nesse mesmo discurso.

Os processos históricos de formação da nação brasileira são marcados pelo uso da violência no espaço público e também nos espaços privados. Mulheres e crianças submetidas ao jugo patriarcal são a imagem mais recorrente quando pensamos sobre as famílias brasileiras ao longo dos séculos. Nos processos de escolarização, assim como no conto narrado por Machado de Assis, o uso da violência física sempre foi corriqueiro. “Escreveu não leu, o pau comeu”, “com sangue a letra entra”… são ditados populares que demonstram essa realidade. Uma visita ao Museu da Escola de Minas Gerais, por exemplo, nos mostrará o “chapéu de burro”, a “palmatória” e diversos outros instrumentos utilizados para humilhar e castigar as crianças que não aprendiam ou que, de alguma forma, fugiam aos limites da rígida disciplina.

Há que se perguntar: quais os resultados dessa construção? A criminalização de crianças e adolescentes pobres, o genocídio da juventude negra, a defesa do encarceramento juvenil e da redução da maioridade penal estão entre os resultados tão perversos dessa história.

Mas toda história tem dois lados e, por outro lado, temos também uma longa caminhada na construção das relações humanas que tenham como base a defesa da dignidade humana, do afeto, do carinho e respeito aos direitos fundamentais de todos e todas. No que diz respeito às crianças, mais especificamente, vale a pena relembrarmos a Convenção sobre os Direitos da Criança e o Estatuto da Criança e do Adolescente, com os quais a nação brasileira se comprometeu na década de 1990.

Temos também histórias, muitas histórias, de professores e professoras que se dedicam à construção de relações pedagógicas baseadas no afeto e no respeito aos direitos das crianças e adolescentes. De comunidades escolares espalhadas pelo território brasileiro nas quais o compromisso com as práticas democráticas norteia o agir cotidiano e contribuem para a formação de sujeitos éticos, autônomos e capazes de assumir a responsabilidade por seus atos e também a responsabilidade social que nos impõe o dever de lutar contra as desigualdades socioeconômicas e contra toda ordem de discriminação que ainda impera entre os humanos.

Do ponto de vista acadêmico, temos a figura ímpar de Paulo Freire cujo legado é a defesa de uma educação amorosa que permita a educadoras e educadores, educandos e educandas tornarem-se sempre mais humanos. Como antídoto à apologia da violência, a vida e a obra do patrono da educação brasileira apontam para a radicalização do exercício da democracia, do diálogo e do respeito às crianças e adolescentes e também às pessoas jovens e adultas em seus processos de formação.

Mais de um século depois, ao lermos o “Conto de Escola”, podemos perceber que o Bruxo do Cosme Velho estava muito à frente do Sr. Milton Ribeiro, atual Ministro da Educação.

E, para além disso, as muitas histórias de educadoras e educadores que se dedicam à construção de relações solidárias, éticas e amorosas, seja nos processos formais de escolarização, seja nos processos de educação popular nos dizem que é possível – e é preciso – guiar-se por outros parâmetros para a formação humana. Histórias que negam a violência como princípio educativo e afirmam o respeito aos direitos fundamentais de todas os seres humanos.

Essas histórias nos permitem afirmar que somos maiores e muito melhores do que aqueles que neste momento tão difícil buscam erigir a violência e uso da força física como parâmetros para a educação. E com esperança e tenacidade vamos superar as forças que buscam instaurar a barbárie.

* Professor da rede municipal de ensino de Divinópolis e da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG)


Imagem de destaque: Charge da “pequena lei da educação” (ou lei de Parieu) que descreve Alfred de Falloux e Charles de Montalembert vestidos de eclesiásticos e se preparando para bater num professor com uma palmatória. Charles Vernier.

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