O ciberespaço democratiza o conhecimento?

Natascha Stefania Carvalho de Ostos*

A partir da segunda metade do século XX os computadores e, mais tarde, as redes digitais, entraram na cena mundial introduzindo novas formas de vivência do espaço e do tempo. O chamado ciberespaço extrapolou os territórios delimitados do Estado-nação, com suas fronteiras pretensamente fixas, e inaugurou um espaço indeterminado e fragmentado, constituído de vários pontos dispersos, passíveis de conectarem-se entre si, formando uma teia cujo desenho se altera constantemente. A dinâmica das relações econômicas, políticas e culturais interage na borda dos inúmeros recortes espaciais que caracterizam a internet, tendo como primeiro suporte o computador, instrumento que viabiliza as diferentes formas de contato. O universo virtual existe como uma dimensão específica, e não como uma instância contraposta ao mundo tangível. No âmbito virtual desenvolvem-se movimentos políticos, efetuam-se transações financeiras, criam-se laços amorosos e de amizade, sendo que toda essa gama de experiências é vivenciada na indeterminação física e no desencaixe espaço-temporal, mas, ao mesmo tempo, em inextricável conexão com o plano da realidade concreta. No ciberespaço o sujeito extrapola a sua localização geográfica sem desligar-se, no entanto, de um referencial físico.

Com a chegada do “celular inteligente”, que funciona como pequenos computadores, esse cenário se intensificou, em sintonia com o crescimento das redes sociais digitais. No contexto atual, da pandemia de Covid-19, onde o isolamento social é necessário, ocorre o uso massivo da internet, não apenas como veículo de entretenimento e interação social, mas também para a promoção do ensino a distância e de outros recursos digitais de promoção do conhecimento. Muitos argumentam que a internet democratiza o acesso a saberes e debates que antes ficavam restritos a certos locais, como a sala de aula. O público também seria ampliado, pois além dos segmentos que frequentam os espaços físicos, outras pessoas poderiam participar das discussões.

Tais ponderações são pertinentes, mas o debate precisa ser aprofundado. A ideia de que o mundo digital é um domínio aberto, desprovido de constrangimentos, mascara algumas hierarquizações. O alcance dos conteúdos depende, muitas vezes, do renome e do poder econômico de quem produz, de sua capacidade de mobilizar recursos técnicos e investir em divulgação, o que não necessariamente sustenta a qualidade do que é ofertado. Outro fato básico, mas muitas vezes esquecido, é que a internet não está disponível para todas as pessoas. Além do tema da própria exclusão digital, muitos criadores de conteúdo educativo exigem pagamento para que o internauta acompanhe seus canais, de modo que os espaços virtuais também demarcam critérios de acessibilidade que diferenciam economicamente os usuários. Assim, o ciberespaço pode configurar-se, muitas vezes, como uma projeção de territorializações já existentes no plano concreto, estabelecendo áreas de acesso público ou privado, de trânsito livre ou restrito, que controlam o fluxo e a circulação de pessoas. Além do mais, a navegação no mundo digital requer competências e conhecimentos que de modo algum são intuitivos, eles exigem aprendizado da tecnologia, treinamento e capacidade de discriminar as fontes e a qualidade do que é ofertado.

Apesar das diversas restrições e desigualdades que envolvem o trânsito pelo ciberespaço, a internet tem possibilitado a disseminação de informações por todo o mundo com extrema rapidez, sendo capaz de agregar grande número de indivíduos em torno de ideias e movimentos antes restritos a uma região ou a um pequeno grupo. Questões que eram debatidas localmente, hoje podem ganhar visibilidade no plano global sem que para isso as comunidades envolvidas necessitem da mediação de um grande veículo de comunicação ou de apoio governamental. Isso indica que o ciberespaço nem sempre debilita os referenciais identitários, pois vários grupos sociais utilizam a internet como forma de disseminar saberes historicamente excluídos, como é o caso dos conhecimentos produzidos pelos povos indígenas.

Porém, em meio à pandemia de covid-19 temos assistido ao oportunismo daqueles que querem fazer do ciberespaço a panaceia para as dificuldades que a estrutura educacional enfrenta, reduzindo o conhecimento a um mero problema de “oferta e consumo” de conteúdos. Sem descartar as vantagens que a dimensão virtual franqueia, devemos atentar para o fato de que as desigualdades existentes no ciberespaço estão diretamente relacionadas aos conflitos que se desenrolam no mundo “real”. Esses espaços encontram-se conectados por relações econômicas e de poder, e é nessa perspectiva relacional que os lugares de conhecimento, inclusive os virtuais, são criados, disputados e investidos de diferentes significados.

Referências

LÉVY, Pierre. O que é o virtual?. São Paulo: Ed.34, 1996.

* Historiadora – Pós-doutoranda da Fiocruz Minas

 

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Tomaz Silva / Agência Brasil

 

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