O brincar e o espaço da casa na quarentena

Juliana Daher*

Túlio Campos**

Babita Faria

Coletivo Geral Infâncias

Desde o início do isolamento social, somos desafiados a repensar novas maneiras de organizar nosso cotidiano e convidados a refletir sobre as nossas formas de escuta, olhares e jeitos de viver. Diante das diferentes realidades de confinamento compulsório, muitos encontram um ponto em comum: a presença constante da criança em casa. Local onde antes ela estava presente praticamente nos momentos de contra turno escolar.

As escolas estão fechadas por tempo indeterminado, algo que gera desconforto e incerteza entre famílias, crianças, professoras e professores. A discussão intensa sobre as desigualdades sociais e o ensino virtual revela marcas profundas na dinâmica das rotinas domésticas. Em contrapartida, as famílias das crianças que continuam tendo aulas online se veem, por muitas vezes, angustiadas com a demanda escolar em meio a tantas outras urgências ligadas à pandemia do coronavírus.

Em tempos de quarentena, percebemos ainda uma crescente busca por conteúdos digitais para “entreter as crianças”. Algo que, certamente, pode ser inclusivo e agregar maior diálogo e convivência entre os membros de uma família. Porém, não raro, ocorre o uso excessivo desses recursos para ocupar o tempo das crianças e “liberar os adultos”, para que possam conduzir suas tarefas domésticas e profissionais.

Diferente da famosa canção de Toquinho, a casa não parece tão engraçada assim para os adultos. Nas redes sociais, são veiculadas fotos com brinquedos e diferentes objetos espalhados pelo espaço – cenário relatado pelos adultos em tom jocoso e algumas vezes explicitamente raivoso. Muito está sendo falado sobre como a presença da criança na casa representa o caos. Contudo, a casa se apresenta como um novo território para esta criança, que a habita com muito mais tempo disponível e uma corporeidade singular, que demanda novas sensibilidades do adulto no acolhimento dessas experiências. Como destaca Jader Janer, “o importante é que nossas palavras, ações e atitudes permitam estabelecer uma relação de intimidade com esses locais a serem criados e imaginados”.

Em pleno movimento de contração social, encontramos nesses novos territórios o corpo brincante da criança, em estado de expansão pela sua própria natureza. Porém, esses corpos estão confinados em um espaço limitado, seja ele de grandes ou pequenas dimensões. Isso, que a primeira vista aparenta um verdadeiro descompasso, pode ser visto como um convite para novas formas de ser e estar de crianças e adultos, um convite para o encontro.

As crianças são grandes mestras, e se as olharmos atentamente, aprenderemos muito com elas sobre o estado de presença. Quando brincam, encontram-se em uma situação potente de inteireza, de conexão consigo, com o brinquedo (que pode ser um objeto, o próprio corpo, uma cantiga, uma história ou a própria imaginação) e com o outro (quando este também está presente na brincadeira). É nesse estado que a criança cria, imagina, expressa, investiga, interroga, constrói. O que menos encontramos neste estado é a alienação. Encontramos sentido nas formas de ser e estar no mundo. E essa pode ser uma rica experiência a ser compartilhada por crianças e adultos.

Neste momento lembramos do menino Diego do conto de Eduardo Galeano, que, ao avistar o mar pela primeira vez, diante de sua imensidão, pediu ao pai que o ajudasse a olhar. O que muitas vezes a criança nos pede é exatamente um apoio na direção do olhar, uma borda, um contorno. E isso é muito diferente de ocupá-la excessivamente, movimento que impele à dispersão do olhar.

O convite é então para aguçar os sentidos, tomar o tempo necessário para apreciar, conhecer, descobrir mais sobre si mesmo e sobre aqueles que compartilham da casa. As brincadeiras simbólicas, as narrativas, o “idioma do faz de conta”, como afirma Yolanda Reyes¹, possibilitam à criança tecer os fios de sua própria história, além de protegê-la de vários “perigos”, como monstros, lobos, criaturas assustadoras que surgem nos contos e que, na vida real, apresentam-se como doença, morte, dor e, atualmente, preocupação com a pandemia.

Segundo Francesco Tonucci, é preciso pensar na casa como um possível e potente “laboratório para se descobrir coisas”: pular, correr, pintar, cozinhar, lavar a louça, ler um livro, teatralizar, contar histórias. As crianças agora se atentam para o que está guardado nos armários da cozinha; para o próprio guarda-roupa e as muitas possibilidades de experimentar diferentes looks em um mesmo dia; para a sala, cujos móveis parecem tão convidativos para a experimentação de cambalhotas e movimentos quase acrobáticos. Esse é o momento de inventar brincadeiras e associá-las aos conhecimentos dos mais diversos, onde as experiências corporais de exploração destes novos territórios da casa consolidam diferentes aprendizados e possibilidades de expressão para crianças e adultos.

Considerando essa nova reorganização dos espaços e das casas, nosso Coletivo acredita que o brincar pode ganhar notoriedade, como uma rica experiência na construção de habilidades, partilha de conhecimentos e valores sobre o mundo, contribuindo para expressá-lo e recriá-lo.

Sim, esse é um percurso que demanda tempo. Além de nos conectar com a criança que habita a nossa casa, nos conecta com a criança que fomos (o que, muitas vezes e por diferentes razões, é algo que não queremos fazer). Mas o momento é de revisar prioridades e elencar alternativas criativas e sensíveis em relação às infâncias.

Os encontros externos não são possíveis no momento, e o que a vida nos oferta é a possibilidade de encontros internos, com os nossos, em nossa casa, e conosco. Tudo o que as crianças nos pedem neste momento é ajuda para olhar, sentir e perceber o que está diante delas, ou melhor, o que está diante de todos nós.

¹ REYES,Y. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância. 1. ed. São Paulo: Global,2010.

* Terapeuta Ocupacional, artista da Cia Pé de Moleque, produtora cultural do Quintalzim, Mestre em Estudos de Linguagens. E-mail jutodaher@hotmail.com

** Professor de Educação Física do Centro Pedagógico da Universidade Federal de Minas Gerais e Doutor em Educação. E-mail tulio.camposcp@gmail.com


Imagem de destaque: Tanto Mar Fotografia, por Laís Gouvêa (Belo Horizonte/MG)

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