Notas sobre os tempos sombrios – exclusivo

Marcos Cezar de Freitas

Eu me senti bastante representado pelo Editorial da edição 117 do Pensar a educação pensar o Brasil, e a referência aos tempos sombrios não poderia ser mais adequada.

Em relação aos tempos sombrios quero compartilhar rapidamente com os leitores uma opinião, que ouso chamar de acréscimo àquele editorial tão importante para todos nós.

Os antropólogos dedicam atenção aos rituais, às teias simbólicas, ao entretecimento interativo que “dá sentido” às práticas que são analisadas no seu próprio fazer-se, no “enquanto é”.

Tenho insistido que o jogo de tensões a céu aberto do qual estamos participando tem na lógica da casa grande um dos componentes essenciais a ser traduzido.

Metaforicamente a lógica da casa grande é mais do que o incômodo de alguns em relação às pretensões daqueles que experimentam os benefícios da mobilidade social resultante de políticas inclusivas, de ações afirmativas ou de expansão dos marcos de cidadania. Ela evoca nosso “estoque de aversões”, para lembrar a densa expressão de Norbert Elias.

A lógica da casa grande no Brasil se configura numa complexa trama em que a “troca de olhares” tem um valor essencial para compreender alguns dos aspectos mais sombrios mencionados naquele editorial.

Na abertura da copa do mundo, em 2014, a Presidente da República foi covardemente insultada por uma multidão que em uníssono bradava um machismo rasteiro que jamais ousou antes insultar publicamente daquela forma qualquer desafeto homem.

Na sequência, aqueles homens e mulheres, adultos e jovens cuidaram de publicar suas performances nas redes sociais. Elaborava-se ali um exercício de “deixar-se ver fazendo” para que os olhares de um público “fidelizado”, usando uma das mais infelizes expressões que temos em nosso cotidiano, pudessem reconhecer os autores da agressão.

Quebrava-se um paradigma que acompanha há décadas os estudos de multidões. A multidão que amalgama e gera a personalidade coletiva, também exibia a ação de cada um que se refestelava no mostrar-se individualmente. Ou seja, a performance fazia-se entranhada na certeza de que alguém se agradava daquilo à distância.

Também em 2014 eu estava com minha filha num supermercado na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, em São Paulo, quase cruzamento com a emblemática Avenida Paulista. No caixa eu me atrapalhei com as sacolas plásticas e minha inabilidade atrasou o atendimento na fila que aguardava. Um senhor começou a berrar comigo. Bradava: “aqui não é bolsa família, aqui é plano real”.

É importante relatar que ao tentar demarcar uma identidade (aqui é plano real) o colérico homem não olhava para mim, nem para minha filha, os insultados representantes do que lhe causava aversão. Ele olhava para os demais consumidores do supermercado. O performático grito se desentranhava de gestos espetaculosos com as mãos. Ele trocava olhares com aqueles com os quais se identificava. Foi aplaudido pelo silêncio dos que estavam.

No dia 17 de abril de 2016, o parlamentar Jair Bolsonaro quando pronunciou seus votos procurou o foco da câmera e trocou olhares “com os seus”. Nessa personagem encontramos mais do que o esgoto e seus piores dejetos. Encontramos um dos aspectos mais estruturais do fascismo que é sua face celebrativa.

O ethos fascista precisa de plateia e exige do emissor de seus conteúdos o cuidado de procurar pelos olhares dos seus, exige uma permanente “prestação de contas”: “está escutando o que eu falo?”; “continuamos juntos?”; “estamos sintonizados?”. Por isso, o que de mais sombrio tivemos naquele asqueroso momento não foi o pronunciamento do fascista, mas o aplauso entusiasmado de muitos.

A lógica da casa da grande que mencionei ao início não está presa à dicotomia casa grande e senzala, não é uma referência que se esgota na certeza de que entre nós brasileiros o passado escravocrata não cessou seus efeitos.

A lógica da casa grande diz respeito à recriação permanente do modo de mostrar desconforto em relação a todo aquele que o olhar encontra quando o modo de olhar se posiciona de cima para baixo, ou seja, quando quem olha se investe de uma superioridade que busca no olhar de “uma sua plateia” um ponto celebrativo de comunhão e encontro.

O tema da meritocracia que tem ferido de morte muitos debates educacionais é da lógica da casa grande. Assim como o contínuo e permanente esvaziamento do prestígio da escola pública demonstra essa lógica no tecido social de um país que cada vez mais identifica o que é público com o que é menor. O fascismo mostra-se sempre no microscópio, nas migalhas e fragmentos da vida cotidiana.

Nós professores podemos protagonizar várias ações de resistência a tudo que está a exigir de nós compromisso e rejeição à indiferença. Mas devemos também qualificar os debates lembrando que se as mais inescrupulosas falas foram encenadas para obter das plateias olhares de aprovação é porque a casa grande tem fundamentos muito sólidos no país e abalar esses fundamentos exigirá uma disponibilidade grande e contínua de todos nós.

Tempo, tempo, tempo, tempo.

Talvez seja o caso de imitar o processo de resistência levado a efeito pelos jovens da cidade de São Paulo que evitaram a desativação de escolas estaduais e dar início a um grande ciclo de “aulas públicas”.

Pensar a educação, pensar o Brasil passará por novas, intensas e radicalmente diferentes trocas de olhares.

* Universidade Federal de São Paulo

Marcos Cezar de Freitas – Chefe do Departamento de Educação – Universidade Federal de São Paulo – Unifesp – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas 

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