Muros que caem, Socialismo e Democracia

Alexandre Fernandez Vaz

Há pouco mais de duas décadas, quando eu me preparava para começar o doutorado na Leibniz Universität Hannover, na Alemanha, conheci um engenheiro florestal albanês. Éramos colegas no curso preparatório para o exame de idioma que habilitava estrangeiros para o ingresso na Universidade Alemã. Ele era ótimo aluno, além de impressionar com a pronúncia perfeita, em latim, dos nomes científicos das árvores. Antes de conhecê-lo, o que eu sabia sobre a Albânia era o que os conhecidos do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) dela diziam, clamando-a como farol da humanidade, modelo de sociedade comunista a guiar os outros países. O pequeno país europeu vivia sob influência da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Os filiados ao PCdoB admiravam Josef Stalin, a quem reputavam uma obra intelectual, um formidável papel na história do século vinte.

O comunismo albanês entrara em colapso poucos anos antes do inusitado encontro supracitado, mostrando ao mundo um passado sob ditadura e opressão. Uma vez desbaratado o regime, milhares chegaram à costa italiana em barcos apinhados, gente que enfrentava o que fosse necessário para abandonar o país. Meu colega não deixava de mostrar um discreto ressentimento com o regime de tantas décadas que, entre outras coisas, obrigara-o ao exame de marxismo-leninismo para que pudesse graduar-se.

Estávamos em meados da última década do século passado e vivíamos o rescaldo e a ressaca do fim do socialismo realmente existente, que caíra, na expressão insuspeita de Eric Hobsbawm, como um castelo de cartas. A marca mais visível e eloquente do fenômeno que conclui o breve século vinte, como o nomeou o grande historiador inglês o período entre 1914 e 1989, foi o fim da separação da cidade de Berlim, da cisão de toda a Alemanha em duas partes, ela que foi o palco, por excelência, da Guerra Fria. Amanhã, 9 de novembro, completa-se a terceira década daquela noite em que o Muro veio abaixo.

A reunificação alemã formal, um ano depois, significou na prática a anexação da República Democrática da Alemanha (RDA) pela República Federal da Alemanha (RFA), ou, em outros termos, o fim da experiência que se via como socialista, agora absorvida pelo capitalismo de Bonn. Embora enfático e bem planejado, o processo não de todo se concluiu. Ainda há resquícios materiais, aqui e ali, da extinta nação, alguns deles transformados em souvenires, compondo um dos elementos centrais dessa praga contemporânea que é o turismo. As principais marcas, no entanto, estão no espírito, e não deixa de chamar a atenção o fato de que o neonazismo encontra solo fértil exatamente do lado Oeste do país. Exclusão e ressentimento demarcam uma juventude que se vê desamparada desde que, ao contrário de seus pais e avós, já não tem seguridade social e pleno emprego vividos sob o regime de partido único. Na Alemanha unificada o sistema de proteção social ainda é, malgrado as perdas dos últimos anos, muito bom, mas a infamiliaridade com estrangeiros, principalmente refugiados (que são mais de um milhão no país), gera preconceito, estigma e violência contra seres humanos reduzidos à condição imaginária de parasitas, aproveitadores e selvagens. Estão dadas as condições para a fantasia regressiva da unidade racial, cujo correspondente é a exclusão de todos que supostamente a ela não pertencem.

O fim da polarização entre um bloco de países reunido na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), liderado pelos Estados Unidos da América (EUA), e outro abrigado sob o Pacto de Varsóvia, sob a hegemonia da URSS, redesenhou a geopolítica internacional, esvaziando perspectivas, forças e vocabulários que eram próprios da Guerra Fria. O mundo mudou, emergiramantagonismos antes não presentes, as formas de dominação e opressão ganharam novos contornos e intensidades.

A ditadura civil-militar que governou o Brasil por vinte anos fez parte da Guerra Fria e seus viúvos não cansam de tentar ressuscitar o cadáver. Que o líder do partido do Presidente da República na Câmara ameace com a reedição do Ato Institucional número 5 (AI-5), o golpe dentro do golpe, como o chamou Elio Gaspari, já mostra o estado de coisas em que nos encontramos. Apesar de estapafúrdia, é preciso levar a sério esse tipo de posição antidemocrática, em especial quando ela procura se justificar como reação a manifestações populares como as que temos visto no Chile, que, aliás, têm sido violentamente reprimidas. São dezenas de mortos e centenas de pessoas gravemente feridas. Laboratório de um projeto de longo alcance para a América Latina, o Chile mostrou que a aliança macabra entre neoliberalismo e terror político foi uma estratégia exitosa da ditadura liderada por Augusto Pinochet. Êxito para alguns, financistas e outros descendentes da aristocracia agrária, bem entendido. A reação popular mostra o quão insuportável a situação ficou no país que é visto por aqui como modelo de previdência social, educação e equilíbrio fiscal.

A Guerra Fria acabou, mas o modelo capitalista que prosperou nesses trinta anos sem o Muro de Berlim não trouxe paz ao mundo, tampouco sequer esperança para trabalhadores e párias. A crise ambiental nos leva ao limite da sobrevivência, apesar dos negacionistas ocupantes da Esplanada, em Brasília. A crítica anticapitalista precisa seguir aguda e cada vez mais refinada, as condições contemporâneas o exigem. Ela deve ser combinada com uma autocrítica tão rigorosa quanto capaz deromper com o legado de autoritarismo e violência que as experiências de Cuba e do Leste Europeu nos deixaram. Sim, em certas situações houve mais justiça no socialismo realmente existente, ainda que com frequência à custa da liberdade. As tentativas de combinar igualdade com liberdade foram solapadas pelo imperialismo soviético, como na Hungria em 1956 e na então Checoslováquia, em 1968. O levante popular de 1953 em Berlim Oriental foi duramente reprimido.

Os traços autoritários da esquerda não são tópicos menores e cabe a ela o esforço de livrar-se deles. Quando vejo a foto de um grande intelectual encimado por um retrato de Stalin, reconheço que algo não está bem resolvido entre nós. Que a recordação da derrubada do Muro de Berlim seja oportunidade para a esquerda reafirmar, especialmente para si mesma, que a democracia deve ser um valor universal.


Imagem de destaque:  Michael Kauer / Pixabay

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