Mulheres, crianças e um movimento coletivo: reflexões a partir do mês de março

Aline R. Gomes

Babita Faria

Larissa Altemar

Coletivo Geral Infâncias*

Você já ouviu a expressão “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”? O famoso provérbio africano se apoia na ideia de que um contexto educativo favorável às crianças se faz com uma comunidade unida e participativa. Nessa “aldeia”, todos são fundamentais, mas uma análise mais crítica do provérbio nos diria que na prática esta aldeia é composta majoritariamente por mulheres.

Historicamente, o fortalecimento dos direitos das crianças e das mulheres se deu paralelamente, fruto de movimentos democráticos, em todo o mundo, em especial no Brasil no final da década de 80. Assim, o encontro e as intersecções entre a categoria gênero e a categoria geração estão longe de serem aleatórios ou eventuais. O que há entre as mulheres e as crianças? O que é ser mulher hoje? O que é ser criança? Por que são questionamentos que vêm juntos? As respostas são inúmeras, pois reverberam os lugares plurais das mulheres e, consequentemente, das crianças na contemporaneidade. Melhor dizendo, os diferentes lugares e a constante luta por permanecer ou modificar alguns deles. Acreditamos que tais perguntas indicam reflexões mais aprofundadas dentro da atual dinâmica das desigualdades sociais.

Em 2018, fundamos em Belo Horizonte o Coletivo Geral Infâncias, grupo interessado na pesquisa e nas práticas que se relacionam às infâncias da cidade. No contexto do próprio Coletivo, é possível analisar a relação das mulheres com as crianças, diante dos atravessamentos envolvidos na mobilização das pessoas e à medida que esses sujeitos se vinculam ao grupo de diferentes formas. Hoje contamos com 67 participantes, sendo 55 mulheres e somente 12 homens, sendo que o Grupo de Trabalho, o qual organiza e sistematiza as ações do Coletivo, possui 7 mulheres e 1 homem.

Traduzir as infâncias em um Coletivo tem sido para nós uma das formas de interpretar o mundo. No Brasil do bolsonarismo, resistência e garantia de direitos já conquistados tornaram-se pautas das mais legítimas. No mundo real, é na dinâmica das relações sociais ou da convivência cotidiana entre nós, os adultos, e as crianças, que se encontram as respostas. Se engana quem pensa que os primeiros são os que menos ganham ao concentrar a atenção na perspectiva das crianças. Ambos aproveitam quando, diante do caos contemporâneo, a realidade se faz mais digna quando este conjunto de sujeitos podem reverberar pluralidades, diversidades e sentidos múltiplos do que é estar no mundo intergeracional, tradicionalmente concebido como ‘adultocentrado’.

Mas, afinal, por que as mulheres parecem ser as grandes interessadas nas infâncias? A relação entre as mulheres e as crianças é ainda um tema a ser ampliado e aprofundado nas pesquisas sociológicas de base feminista ou mesmo nos Estudos da Infância. Percebemos que nas questões que dizem respeito ao espaço escolar, ao cuidado e a maternagem, por exemplo, são inúmeras as publicações que refletem sobre esses sujeitos. Todavia, as categorias “cuidado” e “trabalho” se entrelaçam com as categorias “gênero” e “geração”, enriquecendo o debate e ao mesmo tempo informando diversas tensões1, o que revela a necessidade de expandir o olhar sobre as relações entre crianças e mulheres.

Tornar-se mãe, por exemplo, explicita uma série de questões já postas na sociedade, escancara desigualdades já construídas antes mesmo do nascimento das crianças, mas que ficam bastante evidentes na chegada delas ao mundo, informando o lugar da mulher na sociedade: aquela que tem que se virar para organizar a sua vida e a dos outros, aquela que se responsabiliza pelas crianças independente do laço parental que as une (mães, avós, tias, primas, etc.), e aquela que trabalha em três turnos; enfim, “aquelaS”.

Plurais são as mulheres na mesma medida que as infâncias se fazem plurais. Tal relação ultrapassa a pronunciada dependência física das crianças perante “suas” mulheres. É notável, na mesma proporção, como a vida feminina se molda quando se concebe ter filhos.

Na tentativa de responder uma pergunta chave de uma amiga (“como criar uma criança feminista?”), a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie disserta sobre o assunto no livro “Para Educar Crianças Feministas”. A autora revela como suas experiências de vida e como o mundo externo à relação direta mulher-criança julga e muitas vezes escolhe por nós, mulheres, (muitas vezes, também mães) qual caminho deveríamos trilhar na criação e gestão de tempo dedicadas às crianças.

Seja uma pessoa completa. A maternidade é uma dádiva maravilhosa, mas não seja definida apenas pela maternidade. Seja uma pessoa completa. (…) Todo mundo vai dar palpites, dizendo o que você deve fazer, mas o que importa é o que você quer, e não o que os outros querem que você queira.

(ADICHIE, 2017, p. 8)

Segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2019), a participação dos homens no mercado de trabalho irá possivelmente diminuir nas próximas décadas, enquanto a das mulheres apresenta significativo aumento. As estatísticas mostram que a presença feminina pode chegar a 64% até 2030. Apesar de atualmente os homens participarem quantitativamente nas oportunidades e nos benefícios do mercado de trabalho, esse cenário tende a se modificar, tensionando ainda mais o equilíbrio do gênero no cuidado e na disponibilidade de tempo dedicados à criança.

Sob outro viés, entendemos que refletir sobre a liberdade das mulheres implica também entender as possibilidades de autonomia das crianças, especialmente quando nos referimos ao contexto urbano. A cidade e sua organização, pensada historicamente por homens, pode aproximar, mas, na maioria das vezes, afasta os indivíduos da sua efetiva ocupação. A presença e a circulação das crianças na cidade – quando são possibilitadas – melhoram a vida dos sujeitos adultos que dela compartilham (TONUCCI, 2016).

Outro aspecto que merece destaque ao analisar a relação entre as crianças e as mulheres é a emergência na infância de diferentes manifestações identitárias relacionadas ao gênero. Jogar futebol, brincar de boneca, cantar Lady Gaga, ter o cabelo curto são experiências aceitas socialmente, mas ainda marcadas por estereótipos de gênero. Em um nível mais macro, uma criança que se identifica com o gênero feminino deve ter o direito de exercer sua cidadania tal qual uma criança identificada com o gênero masculino e vice versa? No contexto familiar, escolar ou em outros “chãos sociológicos”, estas questões atravessam o mundo adulto com diversas tensões, afetando todas as subjetividades em cena.

Com as experiências as quais nos propusemos encarar até o momento, o Coletivo Geral Infâncias passou a compreender a potencialidade existente em exercícios mais horizontais e regulares de cidadania. Cidadania que se faz presente cotidianamente ao se estabelecer redes que conectam, dentre outros sujeitos, as mulheres e as crianças.

Apesar da presente escrita ser algo novo e desafiador, trata-se de aceitar diferentes formas de comunicar com outras redes já construídas. Assim, esperamos que os textos mensais por nós redigidos nos aproximem ainda mais. Conheça o nosso Coletivo e saiba mais sobre a diversidade de temas que nos conectam através das inúmeras infâncias.


* O Coletivo Geral Infâncias surgiu em 2018 na Faculdade de Educação (UFMG), fruto de pesquisas desenvolvidas por três estudantes da Pós-Graduação, com o objetivo de dar visibilidade à temática da infância por meio do engajamento entre profissionais que atuam em frentes com, para e sobre a criança no território de Belo Horizonte. O grupo transdisciplinar hoje reúne áreas de atuação e pensamento plurais, como Artes, Educação, Direito, Arquitetura e Psicologia, conformando uma rede de integração, suporte e diálogo sobre as crianças em seus variados contextos de vida. Desse modo, constitui uma iniciativa independente para a mobilização na luta pela qualificação dos tempos da infância.

coletivo.infâncias@gmail.com  / Instagram: @coletivogeral

¹ Um dos estudos que detalham o tema é a obra, ainda sem tradução para o português, organizada por Rachel Rosen e Katherine Twamley, na qual já no título tal relação é concebida de maneira realista e nada romântica: “Feminism and Politics of Childhood: friends or foes?” (Londres: UCL Press, 2018).

Fontes:


Imagem de Destaque:  Eye for Ebony / Unsplash

 

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