Moral, habitus de classe, gênero e protagonismo feminino na série Elite

Evelyn de Almeida Orlando

O uso do cinema na educação é um tema antigo, introduzido no Brasil por alguns intelectuais que entenderam não apenas se tratar de uma ferramenta eficaz para o ensino, como também entenderam não ser possível disputar com os novos artefatos da modernidade, sendo melhor tirar proveito deles. Foi com esse mote que, por volta de 1931, vários intelectuais defenderam que o cinema deveria entrar na escola como um aliado pedagógico. Hoje, além do cinema, temos as séries, presentes talvez mais do que o cinema no cotidiano dos jovens, e que podem ser um valioso recurso para promover reflexões a partir de temas e questões pouco discutidas nas salas de aula, mas que se impõem, de muitos modos, em suas vidas.

Nesse sentido, pensar as representações, os códigos, as linguagens das séries nos permite avançar do puro consumo para um exercício de leitura do que se está consumindo. No âmbito da sala de aula, significa chamar a atenção para o ato de ler o mundo em suas diferentes linguagens. No âmbito das pesquisas, significa atentar para diferentes objetos e fontes de pesquisa que põem em circulação modelos culturais, valores, códigos comportamentais e um conjunto de habitus que vão orientando uma cultura geracional.

Foi com esse enfoque que li a série espanhola  Elite, criada por Carlos Montero e Darío Madrona e lançada em 2018 pela Netflix. Até o momento, conta com três temporadas de oito episódios cada e apresenta uma gama de frentes possíveis para discussão. Escolhi comentar neste artigo a que mais me saltou aos olhos: a relação entre moralidade, habitus de classe, gênero e protagonismo feminino.

É interessante pensar como esse mundo das séries vem produzindo uma inversão dos papéis sociais nas narrativas e provocando o olhar para representações antes impensadas. Sem dúvida, é uma forma de educar o olhar do espectador para uma mudança no cenário, para a existência de diferentes identidades, para as múltiplas composições sociais, para diversos conflitos que resultam do choque de culturas e de classe, para a possibilidade de coexistência, apesar de todas as diferenças e tensões resultantes desse encontro.

A trama tem como cenário principal uma escola secundária voltada para formar a elite espanhola e se desenrola em torno de conflitos de classe que surgem a partir da entrada de três alunos bolsistas na escola. O colégio Las Encinas se constitui como um campo de disputas entre os atores que detêm maior capital simbólico e, portanto, ditam as regras do jogo, e o grupo que não apenas não possui o capital simbólico necessário para entrar na disputa de igual para igual, como, a princípio, desconhece os códigos. Aos poucos, os novos alunos, que constituem esse segundo grupo, vão entendendo essa configuração e passam a mobilizar outros tipos de capital para se afirmar nesse jogo de relações de força.     

 A série nos permite pensar a moral associada ao habitus de classe. Este como um sistema de disposições incorporadas, uma estrutura internalizada, que nos ajuda a compreender como os códigos que organizam uma determinada estrutura social vão incidir nas escolhas, nos valores e nos comportamentos dos indivíduos. Dentro dessa lógica, as ações dos sujeitos são reflexos da posição ocupada na estrutura, mas, assim como os códigos sociais, eles não são rígidos. Quanto mais privilegiado o lugar na estrutura, mais poder de flexibilizar e de reinventar os códigos.

Na série, isso fica claro no que tange ao tema da sexualidade, por exemplo. Há, entre o grupo mais privilegiado socioeconomicamente, uma liberdade maior nos modos como lidam com sua sexualidade. Eles não se reprimem, não se julgam, exploram seus desejos como possibilidades e usam-na como e quando lhes convém.

O sexo, ao contrário de assunto tabu, é elemento constitutivo desses jovens, que o experimentam da forma como ele se apresenta como possibilidade, sem pudor, preocupação ou normatividade. A sexualidade e os modos como lidam com ela é sua principal linguagem de afirmação.

A ausência de freios reguladores entre o grupo social mais privilegiado propicia essas experiências que são vividas sem maiores questionamentos ou tensões, e a liberdade que os jovens de elite encontram para sua sexualidade logo é absorvida pelos jovens bolsistas. O instinto sexual e os afetos múltiplos que derivam dessas relações são o primeiro caminho para ultrapassar as barreiras de classe. É a partir do sexo que as diferenças de classe vão sendo superadas, no sentido de permitir aproximações antes impensadas.

A fidelidade não se constitui como um valor entre nenhum dos estudantes do Las Encinas, código moral facilmente burlado, superado e elaborado. A lealdade, no entanto, é critério de pertencimento. Ela é determinante para as relações e, no fim, para a manutenção do grupo.

Em meio a esse cenário é curioso atentar para o lugar que as mulheres ocupam na trama. Elas protagonizam diferentes frentes, dentre eles: a contestação dos códigos morais e sociais de seu grupo, apesar de fazerem uso dele; a disputa intelectual pelo melhor lugar da sala e pela bolsa de estudos nos EUA; o financiamento da referida bolsa de estudo; a conquista da independência frente à família; a liberdade sexual, a validação de pertencimento ao grupo.

Não se trata de uma ode às mulheres, mas de mostrar como as mulheres, na relação com os homens, podem alcançar um protagonismo na dinâmica social, mobilizando as regras do jogo pelo poder com mais consciência do que habitualmente se lhes atribui. Isso nos permite pensar na relação entre gênero e configuração social e como esse tema vem sendo abordado pela indústria das séries.

Discutir a relação entre moral e habitus de classe, gênero e protagonismo feminino, a partir da série, nos permite trazer para o campo educacional questões que são presentes no cotidiano dos jovens, mas que pouco passam pelas salas de aula, ampliando a possibilidade de diálogo e de leitura do mundo em seu processo formativo.


Imagem de destaque: Netflix

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