Miss Brasil 2017: interseções de classe, raça e gênero

Joaquim Ramos

Sandro Santos

Minha força não é bruta
Não sou freira e nem sou puta (Rita Lee, 2000)

É lugar comum falar do cartesianismo que orienta a racionalidade ocidental – da qual somos, em grande medida, tributários. Os versos de Rita Lee – eternizados pela interpretação magistral de Maria Rita – de modo preciso inferem que até mesmo o mundo das mulheres é marcado por dicotomias e polarizações. A freira e a puta protagonizam uma das várias e possíveis dicotomias que envolvem as mulheres, bem como anunciam tantas outras, tais como: bela e feia; branca e negra, pobre e rica.

Esses versos contribuem para ilustrar nossos argumentos sobre como a mulher tem sido tratada por nossa sociedade machista, classista, racista e cheia de tantos outros preconceitos. Elza Soares – representante icônica das mulheres negras – também nos ajuda a pensar como essa mesma sociedade dá tratamento de choque às mulheres que não apresentam o protótipo cristalizado do “modelo” europeu. Para tanto, basta escutarmos com acuidade uma de suas canções na qual ela afirma, categoricamente, que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”!

Em tempos de extremismos e de barbárie continuamente generalizada, a notícia de que a vencedora do Concurso de Beleza Miss Brasil 2017 foi uma mulher nordestina e negra gerou, como sempre, amplos debates nas redes sociais com discursos carregados por essencialismos. Contra Monalisa Alcântara, de 18 anos, vencedora do concurso e representante do Estado do Piauí, foram dirigidos dizeres que teimam em querer marcar o lugar do negro (ou melhor: das negras) em nosso país. Como se quisessem produzir, através do discurso, uma limpeza étnica, as frases ressoaram como uma bofetada na face do Brasil: “tem cara de empregada. Não era nem pra tá aí”!

No processo de disputa, com outras representantes dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal, os jurados avaliaram Monalisa como legítima representante da nossa brasilidade, no entanto, outro internauta, imbuído da carga ferrenha de preconceitos indagou: “O que é a famigerada brasilidade? É ser negra”?

De modo assertivo, Ângela Davis (2016, p. 102) – ativista e filósofa estadunidense que dedicou sua vida em prol do reconhecimento, do lugar e da luta das mulheres negras em seu país – afirma que racismo, sexismo e as relações de classe se combinam na estruturação das relações humanas, gerando ora formas sutis de invisibilização da questão da mulher negra, ora como dispositivo de opressão das mulheres negras na sociedade[1]. Davis ajuda-nos a compreender que, com a vitória de Monalisa Alcântara, as manifestações de inconformismo nas redes sociais apontam para o fato de que é tolerável a existência de mulheres negras em diversos setores da vida em sociedade sem, contudo, permitir que elas ocupem certos lugares marcados historicamente no imaginário coletivo. Assim, torna-se, no mínimo, inadmissível a presença de mulheres negras e tantas outras que fogem aos estereótipos de beleza universal feminina como campeã de um concurso de beleza de tal magnitude.

Ao ser indagada por uma das juradas como seria representar o Brasil num concurso mundial, Monalisa não titubeou: “Vou ser eu mesma, Monalisa Alcântara, nordestina. Passei por muitas coisas, muitas dores… e isso fez com que eu me tornasse a mulher que sou hoje. Vou ser eu mesma, não tem segredo!”. Essa afirmativa, vinculada ao conjunto da obra, não deixou dúvida sobre o resultado do concurso. Efetivamente, foi merecedora do posto de mulher mais linda do Brasil. Para completar, em outra entrevista, ela afirmou que: “Através da minha história, vou ajudar as mulheres negras a se acharem mais bonitas e mostrar que elas são capazes de seguirem seus próprios sonhos, assim como eu segui o meu!”

É de bom tom lembrar que desde que a baiana Martha Rocha recebeu a primeira coroa de miss, em 1954, apenas três representantes negras conseguiram alcançar a mesma posição. Em 2016, outra negra foi coroada miss brasileira. Trata-se de Raíssa Santana, representante do Estado do Paraná, negra, linda e com todas as características da mulher brasileira. Com ela não foi diferente, pois para além dos inúmeros elogios, uma parcela de pessoas autoproclamadas “nobres” do Brasil, esbravejaram e quiseram destroná-la. Em sua página do Facebook, ela afirmou, de modo educado: “Boa tarde amores. Só quero avisar que quem ficar criticando ou xingando, eu irei bloquear e denunciar Bjs”.

Na contramão da história recente do nosso país, em que as mulheres são tratadas como objetos de segunda categoria, destacam-se as inúmeras mulheres que lutam. Não é redundante, nestes tempos sombrios, afirmar que as mulheres fazem história. Tal afirmação pode ser constatada e, diríamos, muito bem retratada pelo projeto “Mulheres Cabulosas da História”. O projeto consiste em valorizar a participação histórica das mulheres em diferentes setores da vida social e foi idealizado pelo “Levante Popular da Juventude”. Ele problematiza que, apesar da importância histórica das mulheres em diferentes dimensões da vida – seja na política, na ciência, nas artes e etc. – a maioria delas teve seus nomes subsumidos e, muitas vezes, mitigados pelo patriarcado, que sempre subvalorizou o papel e o poder das mulheres na sociedade.

Em tempos tenebrosos, mensagens como as de Monalisa Alcântara e do projeto Mulheres Cabulosas da História contribuem para o empoderamento não apenas de mulheres negras, mas também de outras categorias desse universo. Ao dizer: “Vou levar o poder às mulheres, mostrar para todos que temos coragem e força de vontade para passar por cima do preconceito e do machismo”, Monalisa impulsiona novas maneiras de ir para o front de guerra, pois na história de atrasos e retrocessos recentes de nosso país, esse é o momento em que as mulheres têm, com grande força, os seus direitos esmagados.

Neste campo de disputas, dentre as muitas mulheres que levantaram bandeiras históricas de lutas contra os diferentes tipos de preconceitos e discriminação encontram-se tantas que marcaram seus nomes do lado certo da história. De Dandara à Elza Soares, passando pelo exemplo superlativo de Dilma Rousseff, que apesar de não ser negra, precisou “carregar o peso” de ser mulher, num país patriarcal, misógino e repleto de golpistas covardes.

Esse é um assunto que, indubitavelmente, merece muitas e muitas páginas, no entanto, ao finalizar o texto é bom lembrar que as mulheres continuam produzindo História (não apenas histórias pessoais) e a elas somos tributários, sem pestanejar. Assim, como iniciamos com a canção de Rita Lee, em homenagem à inesquecível Patrícia Rehder Galvão (1910-1962), a nossa Pagu, lembramos que há muitas Elzas, muitas Ângelas, muitas Dilmas e tantas outras mulheres fazendo Histórias.

Por isso, a letra dessa canção de Rita Lee coaduna com a de Elza Soares que diz: “A carne mais barata do mercado é a carne negra, que fez e faz história, segurando esse país no braço…” Esse país que, por gostar de negar sua negritude, insiste que cabelos crespos devem ser alisados.

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DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.

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