Meu cordial brasileiro

Dalvit Greiner

 

No início do século passado, Ribeiro Couto em carta ao embaixador mexicano no Brasil criou o termo “homem cordial”. E assim o descreveu:

“O egoísmo europeu, batido de perseguições religiosas e de catástrofes econômicas, tocado pela intolerância e pela fome, atravessou os mares e fundou ali, no leito das mulheres primitivas e em toda a vastidão generosa daquela terra, a Família dos Homens Cordiais, esses que se distinguem do resto da humanidade por duas características essencialmente americanas: o espírito hospitaleiro e a tendência à credulidade[…]”

Mais tarde, Sérgio Buarque de Holanda ampliou a ideia de Ribeiro Couto e afirmou que a cordialidade brasileira é reflexo da nossa incapacidade de separação entre o que é público e o que é privado, uma perfeita confusão, ou seja, uma perfeita mistura, e não raras vezes, sobreposição do privado sobre o público. O Estado brasileiro é governado pelos vícios e virtudes da casa, do espaço privado, em suas relações de compadrio e alianças. O brasileiro age com o coração e não com a razão, aplicando a lei nos inimigos e acolhendo os amigos nos seus ilícitos. O brasileiro é aquele que faz a festa terminar em pancadaria e morte, por mais familiar que ela seja, embora festa seja sinônimo de prazer.

Desde 1988, portanto passada uma geração, vivemos sob a égide de uma Constituição que vem sobrevivendo trinta anos. Isso é muito em termos de tempo e é ótimo para o Brasil. A Constituição Federal de 1988 é a terceira mais duradoura: perdemos para o Império e para a República Velha. Imaginamos então que esta é uma geração da idade da razão, do Estado de Direito exarado na lei e que, portanto, não nos cabia mais, enquanto brasileiros, nossas cordiais relações. Lá no início dos anos 1990, falávamos dos “filhotes da ditadura” (ah, Brizola!) e dos sustos pregados pelos esqueletos nos armários. Esquecemos que a anistia de dez anos antes era “ampla, geral e irrestrita”, senão não tinha anistia, nem abertura, nem democracia. E assim, cordialmente, deixamos de lado os crimes de tortura. Tudo por um novo tempo. Que não veio. Mais uma manifestação de nossa cordialidade.

E não veio com essa nova geração. Em 1990, éramos 150 milhões de brasileiros que entre mortos e vivos, educaram os novos 120 milhões que nasceram no período. Hoje somos 215 milhões de cordiais brasileiros. Ou seja, quando afirmo educamos, apenas confirmo o óbvio: quem faz a próxima geração é a anterior. Assim, apesar de uma Constituição instaurar o Estado de direito no Brasil, não conseguimos educar essa geração para o uso ilimitado da razão nas suas escolhas. Para a exigência de seus direitos. Ou seja, a nossa tendência à credulidade, ao irracional, ao místico, ao religioso, à crença ainda se mantém com tamanha força numa população que prefere acreditar cegamente do que duvidar e errar, talvez, abertamente. Que prefere esperar o Salvador da Pátria agir do que lutar pelo que lhe é devido. Do púlpito eletrônico ao whatsapp que nesta eleição transformou-se em “santinho eletrônico”, prometendo milagres e benesses, vimos formar uma nova geração de políticos que se dizem contra a política, e que não fazem política: apenas administram as coisas. E isso inclui a coisificação do eleitorado, do cidadão: por isso, é fácil medir em arrobas.

Quando olho para a composição de nosso próximo Congresso Nacional vejo ali a nossa longa tarefa adiante. Nossas corrupções cotidianas se manifestam ali. Sempre afirmei para os meus alunos e alunas que um Congresso Nacional é uma amostaperfeita de uma sociedade. Aqueles parlamentares são o pensamento da sociedade brasileira. Não, eles não refletem o pensamento da sociedade. Eles são o pensamento da sociedade. Já tínhamos visto isso em Belo Horizonte, com a sua Câmara eleita em 2016.

Então, grosso modo, ali estão presentes nossas pequenas corrupções cotidianas, nossa louca vontade de linchar alguém, uma vontade irrefreável de acusar o pobre de vagabundo, de devolver para os seus armários todos os homossexuais, de levantar a Bíblia e clamar a Deus acima de tudo, de atirar no máximo de índios que só atrapalham o crescimento do país, de exigir uma autoridade que mande meu filho adolescente para casa porque eu já perdi autoridade sobre ele, que mate sem se preocupar com julgamentos, que ponha as coisas em ordem: trabalhador trabalhando, estudante estudando, professor ensinando “o que deve ser ensinado”, e por aí vai.

Ainda bem que tem o outro lado. Pequeno, significativo. E cabe a esse outro lado pequeno, alguns cento e pouco deputados, portanto, aproximadamente um quinto da nação, uma grande obrigação moral de tomar para si essa longa tarefa. Educar e continuar educando para que abandonemos nossa cordialidade e instauremos de fato, um Estado de Direito. E exijamos, já, com veemência, o direito a informação para que possamos fazer melhores escolhas.


Imagem de destaque: Vinicius Amano

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