Memórias no corpo – meus anos escolares

Alexandre Fernandez Vaz

Fui institucionalizado muito cedo no sistema educacional, pelo menos se for considerada a época e o lugar em que isso aconteceu, a Florianópolis do início dos anos 1970. Com quatro anos comecei a frequentar o que se chamava Jardim de Infância, para um ano depois ser promovido ao Pré-primário. As recordações do período são algo difusas, mas vários episódios permanecem na memória (como lhes é possível, por certo, nessa negociação entre lembrar, esquecer, imaginar, que é o trabalho mnemônico).

A pré-escola era o pátio superior arborizado, o parque, a sala, os pátios inferiores, o auditório, alguns colegas. As professoras e as atividades das primeiras letras, o exame dentário, os desenhos, a presença materna. Lembro-me mais ou menos bem de tudo isso, assim como do uniforme enxadrezado, em que predominava o vermelho-vinho, com motivos miudinhos na camisa e no short.

Se não foram isentos de mal-estares aqueles primeiros anos de institucionalização, tampouco foram de todo ruim. O pior ainda estava por vir. A passagem para o primário foi marcada por embaraços que se arrastaram pelos quatro anos seguintes. No primeiro dia, as flores que meus pais me fizeram levar à professora não bastaram para arrefecer o sentimento de inadequação que, de uma forma ou de outra, eu nunca deixaria de ter. Sem conseguir permanecer na escola naquela manhã de tanto movimento e uniforme novo, voltei para casa e para uma experiência também conhecida: a reprovação paterna.

No começo da década de 1960, o filósofo Theodor W. Adorno proferiu uma palestra sobre as vicissitudes da educação e pontuou a dificuldade do ingresso na escola. Ele destacava a boa vontade dos professores ao tentarem criar um clima de acolhimento distribuindo doces aos recém-chegados. Para o grande dialético não era aquilo, no entanto, mais que uma espécie de embuste, a tentativa de tornar o novo ambiente, na aparência, menos hostil.

Adaptei-me do jeito que foi possível à escola primária, mas nunca me senti confortável com o ritmo repetitivo das aulas, o disciplinamento do corpo enfiado numa carteira que parecia um cockpit de carro de corrida, as maldosas estratégias competitivas das professoras. E do professor de Educação Física, desde quando nos tocou a separação entre meninos e meninas nas aulas de quadra. Foi quando também fui submetido por primeira vez a uma prova física rigorosa, o Teste de Cooper em seus doze minutos de máxima performance. Cada vez mais educado para levar corpo e espírito aos seus limites, sai-me bem na pista improvisada em uma rua interna à escola, com os seus cem metros de extensão demarcados por duas bandeiras.

Adestrado pelo primário, mudei de escola para frequentar o ginásio. Foi tudo ainda pior naqueles primeiros dias em que encontrei alguns dos meus ex-colegas, mas, principalmente, crianças que vinham de outro colégio, já entre si familiarizadas. O regime disciplinar das aulas, com respectiva troca de professores a cada cinquenta ou cem minutos não foi um problema, mas, de resto, quase tudo seguiu à beira do insuportável. Em especial, o terrorismo dos docentes que ameaçavam com a possibilidade de prova a qualquer tempo, sem aviso prévio, de modo que era preciso estar com a matéria em dia a cada aula. Nunca houve um exame sem aviso, mas, não tive a competência (como ainda às vezes não tenho) para perceber que o que era dito nem sempre era o que deveria ser entendido.

Devo ao temor daqueles anos o sucesso escolar? Talvez, ao menos em parte. Memória que fica no corpo.

Era um colégio católico esse em que cursei o ginásio, outrora só para rapazes, mas já misto na época em que o frequentei. Apresentava laivos progressistas e ênfase nas ciências, no rigoroso aprendizado da língua nacional, nos esportes e na formação da autonomia – a boa retórica era incentivada, assim como o posicionamento crítico frente ao mundo. Não escapei das aulas de Educação Moral e Cívica – essas que o obscurantismo sugere que ressuscitem –, mas nelas o debate, mesmo entre crianças de onze ou doze anos, acontecia. Ao mesmo tempo, a disciplina exigida não era pouca, fosse no uniforme (feio, como costumam ser os trajes escolares brasileiros) ou no controle dos espaços – no interior dele, os corpos, claro: tínhamos que esperar em pé os professores entrarem na sala de aula e o espelho de classe era rigoroso.

Findo o ginásio, mudei novamente de escola, desta vez para seguir nas aulas pela manhã, o que era impossível no colégio em que estivera nos anos anteriores. Não houve trauma, tampouco a depressão que pode seguí-lo, mas já um sentimento de que certa farsa se colocava como repetição histórica. Era uma dessas instituições que começavam como cursos pré-vestibulares, e logo já ofereciam do científico à pré-escola. Supostamente afinada com o contemporâneo, com apostilas e dezenas e dezenas de alunos em sala, tinha como única vantagem oferecer-me a chance concreta do anonimato. Dois anos foram o bastante e, no que antecedia à Universidade, fiz o caminho inverso do esperado, voltando para onde frequentara o ginásio. Ao ter preferido regressar a uma instituição católica em detrimento da laica (as decisões de ir e vir foram sempre minhas, não de meus pais) dei um passo adiante, já que ao menos eu retornava a um lugar em que o conhecimento tinha valor.

No terceiro científico já não havia uniforme, a não ser o uso de jeans, nem sempre de fato exigido, e o clima era ainda mais progressista. Estávamos nos estertores da ditadura, mais um pouco e os militares deixariam o poder. Manifestávamo-nos por eleições diretas para Presidente da República, falava-se de política sem rodeios, mas não sem polêmica – esta, aliás, nunca fez mal. Quando vejo o tipo de discussão que hoje temos em relação à presença do debate político nas escolas, dou-me conta do caráter regressivo do presente.

Foi bom ter frequentado a escola? Não foi um prazer. Contente mesmo fiquei quando, sem olhar para trás, pude deixá-la.

Ilha de Santa Catarina, novembro de 2018.

 

Imagem de destaque: Kyo Azuma/Unsplash https://zp-pdl.com/apply-for-payday-loan-online.php https://zp-pdl.com/emergency-payday-loans.php http://www.otc-certified-store.com/neurological-disorders-medicine-usa.html

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