Memórias da escola 19

Cleide Maciel

O tema da relação família/escola não se esgota! O que é (ou deve ser) atribuição de cada uma dessas instituições, sempre é objeto de nossas conversas, debates, estudos e pesquisas. Assunto sobre o qual ainda não colocamos um “ponto final”, nem sabemos se o faremos, um dia. Provavelmente, iremos variar o conteúdo, atualizando-o no tempo e espaço. Um desses conteúdos – o dever de casa – ocupa lugar de destaque!

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Bem cedo comecei a entender que fazer o Para casa era uma obrigação “inegociável”. Minha mãe estava sempre em casa. Mesmo no tempo em que foi professora de corte e costura, essas aulas eram dadas na mesa em que almoçávamos. Assim, não tínhamos como negligenciar: ela estava ali, sempre presente. Até à quarta série, foi capaz de responder dúvidas, explicar o que eu não tinha entendido, buscar em sua pasta de ex-aluna do primário, exemplos e ampliação do que eu estava estudando (a pastinha da minha mãe merece uma recordação à parte…).

Assim que “tomei pé”, comecei a fazer meus deveres de casa sozinha. Nem parava para pensar se essa era uma atividade do meu agrado ou não. Simplesmente fazia. Por um tempo, passei a fazer as tarefas escolares assim que chegava em casa, antes mesmo de almoçar. Meu prato, já pronto, ficava num canto do fogão de lenha, para não esfriar. Muitas vezes, quando ia almoçar, o feijão estava ressecado! Não me importava. É que depois – e antes de ficar liberada para brincar – ainda tinham as tarefas estabelecidas por minha mãe. Como filha mais velha, eu não escapava de ter o que fazer. Então, era uma dupla responsabilidade: o para casa e as tarefas domésticas.

Não sei bem em que ano começou, mas o Para casa se “expandiu” para um Caderno de férias! Nas férias de julho, com o ano letivo em curso, a perspectiva de que as crianças ficassem um mês inteiro, sem “pegar no lápis”, acredito, devia deixar as professoras bastante receosas. Vão esquecer tudo o que ensinamos no primeiro semestre, deviam pensar. Na certa, se esqueciam que ser aluno constituía só uma parte do que na verdade éramos: crianças.

As atividades previstas para as férias de julho, quando cursava o terceiro ano primário, foram inesquecíveis! Tínhamos que escrever uma composição/redação, não sei ao certo quantas no mês, mas minha memória aponta para uma periodicidade diária. Talvez não chegasse a tanto. Mas, dia sim, dia não, ou três por semana, é bem provável. Era muita coisa! A ponto de me deixar paralisada, sem coragem para começar. Além da quantidade, ainda tinha o desafio de inventar os títulos! Ou seja, ser algoz de mim mesma! Ouvia minha mãe dizer, com insistência: Vai fazer seu dever de férias! Era como se tivesse quebrado um pau no ouvido

As férias de julho eram as melhores! Tempo de seca, estávamos livres para os quintais, para as ruas, em tempo integral. Colegas, vizinhos, primos, irmãos, todo o tempo possível para brincar (e brigar). Nossa rua, sem calçamento, ia acumulando uma poeira fininha e vermelha. Ajuntávamos esse pó, fazíamos um monte (o mais alto possível), na parte mais baixa da rua. Depois, um de cada vez, montava numa pequena bicicleta e, da parte mais alta da rua, dávamos a largada em direção ao monte de poeira! O desafio era o de quem levantava mais pó. Isso dava muita discussão, porque todo mundo achava que sua “explosão de poeira” tinha sido a mais alta! Ganhávamos pitos quando chegávamos em casa, por causa da sujeira, mas ninguém ligava. No dia seguinte, lá estávamos nós, nesse campeonato tão sui generis.

As brincadeiras eram muitas: pique, mocinha e bandido, bola… brincadeiras de rua, de bando de crianças. À noitinha, depois do jantar, ainda tínhamos um tempinho antes de dormir. De novo, nas ruas, ficávamos sentados no passeio, porque se sujar depois do banho tomado era definitivamente, proibido! Então contávamos casos, imaginávamos os próximos lances dos seriados, vistos no matinê do cinema, aos domingos e outros mais. Casos de assombração, mula sem cabeça, alma do outro mundo, eram os preferidos. Ficávamos arrepiados, morrendo de medo. Todos os dias, as mesmas histórias. A luz fraquinha que vinha dos postes, validava esse “clima de terror…”

E o momento para escrever as composições? Não sobrava! O tempo foi passando, o mês de julho se escoando, e minha mãe “malhando” na minha cabeça, dizendo que eu tinha que escrever! Até que chegou a última semana de férias. Aí não pude mais adiar: fui obrigada a escrever. Só podia ir brincar depois de feita a tarefa. Mas eram muitas, as redações, que ficaram “amontoadas”, para serem escritas. A “areia da ampulheta” ia escorrendo, minha produção escrita paralisando e, entre essas duas medidas, as lágrimas rolavam pelo meu rosto. Nem sei o que pensava: só chorava!

Não me esqueço do olhar da minha mãe: braveza, dó, pena, solidariedade… Ela me olhou firme nos olhos e disse: – Vou te ajudar a escrever! Sentou na mesa comigo, inventamos os títulos e fomos escrevendo, cada uma seus textos. Ela escrevia numa folha de papel para que eu pudesse passar a limpo. E assim, meu Caderno de Férias foi sendo “preenchido”, a tarefa sendo cumprida. Não sei quanto tempo gastamos. Que alívio!

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A relação família/escola, nessas “longínquas” férias de julho, ameaçou desequilibrar sob a força de uma atividade escolar claramente desproporcional. A família, na figura da minha mãe, fez o pêndulo voltar ao centro!


Imagem de destaque: Dana Marin / Unsplash

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