Lucas

Dalvit Greiner

Aberta a temporada de Conselhos de Classe nas escolas públicas municipais de Belo Horizonte. O ritual é comandado pelo Coordenador Pedagógico. Quase mediúnicos juntamo-nos todos em volta de uma mesa e fazemos aparecer diante de cada um de nós os alunos e alunas. Em cada turma encontramos cinco bons, cinco sofríveis e os demais vinte e cinco que fazem parte daquele intervalo do espectro que chamamos “normais”. Ou seja, estão dentro da norma: respeitam as regras – forçadamente; realizam as atividades letivas – forçadamente; escolhem uma ou outra disciplina para realizar todas as tarefas – forçadamente; não nos agridem – forçadamente e, portanto, não damos muita bola para suas individualidades. Estão socializados. Nós os tratamos como a turma. A Turma 3D.

Falamos uma generalidade da turma. Em geral, opiniões nada favoráveis. Os bárbaros nunca são bem vistos. Quesitos e critérios que nunca foram trabalhados e desenvolvidos nos estudantes são agora guia para avaliação dos mesmos. Espera-se que a petizada aprenda disciplina com o divino espírito santo. Todos os tipos de disciplina, principalmente aquela de ficar quietinho enquanto o professor fala. Esquecemos muito facilmente que disciplina de ficar quietinho também é uma coisa que pode e deve ser ensinada na escola, por mais que a gente espere que os pais ensinem no mínimo isso. Mas adolescente que não fala, principalmente mulher, é preocupante (a frase opinativa não é minha, é de uma colega). Concordo plenamente. Adolescente mudo está a meio caminho do suicídio: tem muito problema ali dentro.

Destaques da turma. Alguns minutos de glória e elogios para os bons estudantes. Nunca sabemos o que fazer, coletivamente para estes bons alunos. Um elogio escrito em forma de certificado, um mimo para a família que com o tempo ficará numa gaveta. É uma lembrança de que a Escola Pública podia ser melhor. Queríamos dá-los a todos. Sem querer chegamos à conclusão de que não fizemos a diferença para este aluno. Ele é bom porque tem um bom acompanhamento familiar. Gostaríamos que todos tivessem uma família assim, mas não é esta a realidade.

Aqueles alunos do meio, aqueles demais vinte e cinco “normais” passamos no automático. Uma sequencia de nãos, às vezes, quem sabe, talvez, um dia, tá melhorando, tá piorando, situações engraçadas, bravatas, piadas. Tudo acontece no Conselho de Classe. E de repente, aparece o Lucas.

O Lucas são aqueles cinco últimos da turma. Parece que todos tem o mesmo nome, o mesmo sexo masculino, o mesmo caráter, os mesmos problemas e nenhuma vontade. Às vezes tem uma família tradicional (pai, mãe e filhos) que negligenciam o filho que tem. Noutras vezes moram com as avós. As avós, coitadas! Quando alguém da família atende a escola ouvimos: “não dou conta desse menino!” É um pedido de socorro. Deveríamos ser uma sociedade do socorro mútuo já que todos pedem socorro. O adolescente pede socorro. O professor pede socorro. A família pede socorro. E ninguém para socorrer explicando que uma possível solução está num socorro mútuo.

É bem verdade que o Programa Mais Educação tentou dar um alívio na dor, porém acredito que o fez de forma equivocada. Ao receber o relatório dos mediadores ou facilitadores – não me lembro que nome deram à função – percebe-se que o objetivo não foi atingido. Não basta ter boa vontade: é preciso alguma técnica para ensinar. O Lucas não teve o atendimento no momento certo. Passou nove anos na escola e agora tentam ensiná-lo a gostar da escola como lugar de aprendizagem acadêmica: ler, escrever e contar. O Lucas gosta da escola porque lá ele pode fazer tudo o que é impedido de fazer em outros lugares, exceto atingir aquele objetivo a que toda escola se propõe. O mínimo de conhecimento acadêmico.

Aos catorze, quinze anos ou mais seus interesses são outros. Lucas, às vezes tem dinheiro. É branco, desmitificando um pouco essa ideia de que o estudante negro é o problema. Aparenta ter vindo da escola privada, é bem vestido, bem falante e imagina que seu sucesso está na cor da pele. Ninguém precisou dizer isso abertamente para ele. Ele lê o mundo. Ele sabe que nesse país racista o branco pobre, mesmo um analfabeto funcional continua com muito mais chances que o negro em melhor situação de aprendizagem escolar. Na medida em que a crença na escola como distinção social é fraca, vale a distinção da cor na disputa pelo emprego, pela vida.

O cuidado não veio no tempo certo. Quando o sintoma apareceu aos seis, sete anos, ao longo da carreira escolar, ele não teve a devida atenção. Lucas será certificado no ensino fundamental. Depois de nove ou dez anos na escola, Lucas é um adolescente escolarizado que vai aumentar as estatísticas dos analfabetos funcionais medido pelo Instituto Paulo Montenegro. Ainda bem que existem outras formas de ganhar a vida. Torcemos para que sua opção seja entre as formas honestas de viver e que ele seja feliz. O sistema escolar não deu conta do Lucas, mas lhe deu escolaridade.

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