Lembrando Virginia Schall em tempos de pandemia, epidemias e desmontes

Zélia Profeta*
Natascha Ostos**

Durante a sua vida profissional na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Virgínia Schall, atuou em educação em saúde, fazendo sempre uma articulação entre esses dois campos de forma criativa, lúdica e provocativa. Nas três Unidades da Fiocruz por onde ela passou, Instituto Oswaldo Cruz e Casa de Oswaldo Cruz em Manguinhos, no Rio Janeiro, e no Instituto René Rachou que é a Fiocruz em Minas Gerais, deixou um legado institucional importante e muita inspiração.

A sua visão do processo educativo era que este devia estar afinado não apenas com a prevenção de doenças, mas com a promoção da saúde, a construção da cidadania e o comprometimento com a transformação social. Além disso, entendia a importância do saber estar comprometido com o desenvolvimento de valores afinados com a autoestima, o respeito, a responsabilidade social e ecológica, a justiça e a solidariedade. Entendia também que o processo de construção de conhecimentos devia ser crítico, estimulando os sujeitos a refletirem sobre suas próprias condições de vida, percebendo como o cotidiano e a existência concreta estão relacionados com a organização social e a construção histórica da coletividade. Nessa perspectiva, o conhecimento não se apresenta como uma categoria imóvel, ao contrário, ele precisa ser mobilizado no presente, no momento da ação do sujeito, auxiliando-o a resolver situações-problema que exigem a articulação dos saberes em diversos contextos.

Virgínia Schall sempre teve em mente que a democratização do conhecimento no Brasil não depende apenas da eliminação das contradições e incoerências existentes dentro do sistema educacional. Também seria preciso atentar para a ordem social excludente que vivenciamos em nosso país e que coloca uma série de distorções e de desigualdades estruturais que repercutem, diretamente, no sistema educacional, impedindo que grande parcela da população vivencie integralmente todas as possibilidades de construção do saber.

Assim, o conceito de saúde que ela usou foi sempre na perspectiva da saúde no seu sentido mais amplo de um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Enfatizando sempre a noção de saúde, promovendo a preservação da vida individual, da espécie e do planeta.

Virginia entendia que o trabalho com alunos, em sala de aula, ou fora dela, devia ser participativo, estimulando estes a irem além dos problemas identificados nos seus territórios e com um olhar na promoção de ações coletivas de solução com participação das comunidades. Ela compreendia que nos desafios colocados pelo meio natural – na dinâmica do corpo social, nas disputas, mobilizações e conflitos cotidianos – o ser humano precisa ser criativo para desenvolver diversas maneiras de pensar, sentir, simbolizar, agir e se colocar perante o mundo.

Virginia trabalhava numa perspectiva integrada de ciência, saúde e educação e seguramente teria muitas ideias inovadoras para serem desenvolvidas nestes tempos atuais de pandemia, epidemias, pelos quais estamos passando e temos passado. Tempos dificílimos de desmontes, por exemplo, da Ciência, Tecnologia e Inovação do país (CT&I), especialmente a partir de 2017, com cortes profundos no financiamento da educação, CT&I e saúde. Os dois últimos governos, do ex-presidente Temer e do atual Presidente Bolsonaro, têm levado o país a um rumo equivocado, obstruindo uma importante porta de saída para a crise econômica e social que é justamente pela via da educação, CT&I e saúde. Vivemos uma situação de desmonte desses setores, especialmente num ambiente de complexidade do quadro demográfico e epidemiológico brasileiro, onde convivem, lado a lado, doenças transmissíveis há muito existentes; doenças emergentes e re-mergentes, com os acidentes de trânsito, homicídios, além de outros problemas geradores de doenças como a falta de estrutura básica em diferentes regiões urbanas, como saneamento.

A visão integrada de ciência, educação e saúde, tão presente no trabalho da Virgínia, e de muitos de nós militantes da CT&I, saúde e educação desse país, torna-se cada vez mais necessária e urgente. A experiência que estamos vivendo com a pandemia da COVID-19 está nos mostrando de forma contundente que essa visão integrada é a saída, e que precisamos de mais Estado, mais políticas públicas, e do nosso Sistema Único de Saúde (SUS) fortalecido. Apesar de toda a tragédia que vem acompanhando esse momento da pandemia é o momento de revermos processos, formas de organização, e partirmos para novas construções cada vez mais críticas e de fortalecimento de cidadanias, enfatizando sempre a noção de saúde ampla para promoção da vida digna para todas e todos.

Virginia faz falta, pois seguramente, estaria com a sua coragem, disposição e alegria nos ajudando muito a pensar novas formas de atuar em educação e saúde, de forma emancipadora, preservando a vida individual, da espécie e do planeta.

Referências

Texto final do VIII Congresso Interno da Fiocruz

Educação em saúde no contexto escolar brasileiro: influencias sócio-históricas e tendências atuais. Ciência, Saúde e educação- O Legado de Virginia Schall, Simone Monteiro e Denise Pimenta, organizadoras, 2018

*Pesquisadora do Instituto René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz- Fiocruz Minas -zelia.profeta@fiocruz.br

** Pós doutoranda da Fiocruz Minas – natascha.ostos@fiocruz.br

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Virginia Schall. Foto: Gutemberg Brito / Fiocruz

 

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