Jogos olímpicos, sociedade, educação – exclusivo

Alexandre Fernandez Vaz

Em 1º de agosto de 1936, foram abertos os Jogos Olímpicos de Berlim, um evento que impressionou pela grandiosidade e que ficou marcado como celebração da Alemanha Nazista. Não é para menos. Com mais de quatro mil atletas, entre eles trezentas e tantas mulheres, os Jogos foram transmitidos pela incipiente televisão, dando a oportunidade para berlinenses e visitantes assistirem às competições em quatorze postos espalhados pela cidade. O Estádio Olímpico, construído especialmente para o evento, comportava até cem mil pessoas e todo o complexo esportivo do qual ele ainda hoje faz parte podia receber até cinco vezes mais pessoas ao mesmo tempo. O Nacional-socialismo foi um empreendimento totalitário que se valeu do esteticismo como recurso de dominação. As Olimpíadas bem compuseram este intento e logo foram imortalizadas pelo documentário em duas partes Olympia (Festa dos povos, Festa da beleza), de Leni Riefenstahl, filme tornado paradigmático, desde então, para a captação imagética do esporte.

Sessenta anos depois, os Jogos Olímpicos começam hoje no Rio de Janeiro, depois de nove anos de preparação e de a cidade sediar os Jogos Pan-americanos em 2007. A televisão não é mais uma novidade, e as mídias sociais vão se fartar de informações escritas e, principalmente, de imagens em tempo “real”. Atletas já não são mais ídolos, mas celebridades.

Em momento político mais que desfavorável (presidente interino, presidente temporariamente afastada depois por processo bizarro na Câmara de Deputados, legislativo desmoralizado, crise econômica etc.), os dias que antecederam a abertura do evento não foram felizes. Uma enxurrada de críticas da imprensa nacional e internacional tem sido derramada sobre a organização dos Jogos, destacando as promessas não cumpridas – incompleta despoluição da Baía de Guanabara e da Lagoa Rodrigo de Freitas em primeiro lugar –, os problemas da Vila Olímpica – o que levou algumas das primeiras delegações a imediatamente se recusarem a ocupar suas instalações –, os riscos da violência desmedida. Embaixadas sugeriram a seus cidadãos que levassem algum dinheiro disponível, em espécie, para entregar ao provável assaltante. Expediente, aliás, comum entre brasileiros de grandes cidades.

O alcaide Eduardo Paes pouco ajudou nesse processo, fanfarronando que os Jogos trarão muito para a cidade, disparando comentários de mau-gosto, como o de que mandaria um Canguru para aplacar a ira de australianos insatisfeitos com a Vila, e exercendo uma de suas prediletas especialidades, que é encontrar rapidamente um culpado por algo que não tenha dado certo.

Mas os Jogos Olímpicos aí estão, e oferecem, além do provável espetáculo de corpos hábeis e técnicos vencendo e quebrando recordes, uma boa oportunidade para pensar na relação entre esporte e sociedade, importante para a Educação. É provável que muitas escolas e unidades de educação infantil tenham tomado as Olimpíadas como tema de projeto, dando a oportunidade a crianças e jovens de se defrontarem com saberes, conhecimentos e informações por novos ângulos e possibilidades de associação. Seria o caso de aproveitar o ensejo, e não somente em aulas de Educação Física, para analisar o esporte como um fenômeno social expressivo de nosso tempo, suas linhas de força e contradições. Do mesmo modo, não estaria mal dedicar algum tempo a refletir sobre o nacionalismo, este sentimento que vem e volta, ao qual se atribui sentidos diversos, quase sempre socialmente negativos.

Para os Jogos do Rio de Janeiro, o Brasil fez um grande investimento, como é de conhecimento público. Foi todo um esforço do governo federal, com bolsas para atletas de excelência, patrocínios de empresas estatais e até mesmo um programa das Forças Armadas que têm incorporado em seus quadros um terço de todos os atletas que representarão o país nas próximas semanas. Além disso, muitas universidades investiram em parques esportivos e foram certificadas para o acolhimento de delegações estrangeiras em treinamentos para as Olimpíadas.

Cabe perguntar o quanto um país deve reservar recursos públicos para o fomento do esporte de alta performance. Trata-se do mesmo que o investimento na arte, em que parece evidente que o Estado deva se ocupar de práticas com menos potencial de concorrência mercadológica? Arte e esporte são diferentes, mas expressam, cada qual à sua maneira, algo da condição humana. No esporte interessa, geralmente, ultrapassar o limite corporal jamais alcançado. Se para o atleta ele é quase sempre uma profissão e objeto de um investimento afetivo tremendo, os espectadores buscam torcer e eventualmente desfrutar esteticamente da forma esportiva2. Talvez um dia a escolas e as instituições de atendimento à educação infantil ensinem alunos e crianças a desfrutarem esteticamente, para além da torcida, o espetáculo esportivo3. Seria ótimo que também mostrassem o que é necessário para que a maximização da performance seja alcançada, via de regra, uma entrega sem limites do corpo à dor e ao contínuo sofrimento da preparação. Documento de cultura, documento de barbárie, escreveu Walter Benjamin em 1940, ele que conhecia, a seu jeito, o jogo e o esporte.

Um legado para a Educação pode ser este, o de pensar sobre o esporte como expressão deste nosso tempo. Para os habitantes da cidade do Rio de Janeiro, no entanto, parece que muito pouca coisa vai, de fato, restar de positivo. Que a cidade, tão necessitada de tudo, e o próprio país, ainda mais, precisassem dos Jogos para investir em infraestrutura, já é mostra, de qualquer forma, de que a coisa não vai bem.

Em 1984, Sarajevo, capital da Bósnia-Herzegovina, sediou os Jogos Olímpicos de Inverno. Na década seguinte foi sitiada durante quase quatro anos por forças sérvias e destruída. Antes, em 1914, nela fora assassinado Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, em episódio que desencadeou a I Guerra Mundial. “Rio, cidade-desespero/ A vida é boa mas só vive quem não tem medo/Olho aberto malandragem não tem dó/Rio de Janeiro, cidade hardcore”, diz a canção Zerovinteum do Planet Hemp. E completa: “Sarajevo é brincadeira, aqui é o Rio de Janeiro”. Esperamos melhor sorte para o Brasil e para a “cidade maravilhosa”.

Berlim, Kreuzberg, agosto de 2016.

1 – Faço um agradecimento muito especial a Michelle Carreirão Gonçalves pela leitura atenta, cuidadosa e crítica, que ajudou muito, desde o início, a minorar os problemas de meus textos publicados neste Pensar.

2 – Sugiro sobre o tema da forma esportiva a leitura da tese de doutorado de Michelle Carreirão Gonçalves, Esporte e Estética: um estudo com jogadoras de rúgbi, defendida no Programa de Pós-graduação em Educação da UFSC em 2014 (https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/123284).

3 – Tratei um pouco do tema em Jogos, esportes: desafios para a Educação Física Escolar, em 2010, nos Cadernos de Formação RBCE (http://revista.cbce.org.br/index.php/cadernos/article/view/986).

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