Intolerância religiosa não se discute na escola!

Otavio Henrique Ferreira da Silva

Ao se ler e reler a frase apresentada anteriormente verifica-se a presença de uma polêmica que está colocada em torno da intolerância religiosa: por um lado a concepção opressora de que a escola não deve ser um espaço que incentive a discussão de temas como a intolerância religiosa e, por outro, a concepção dos oprimidos, na qual a escola é um lugar apropriado para se debater a temática, devido à diversidade cultural, política, social, econômica e religiosa da qual pertencem os sujeitos educandos, suas famílias e professores.

A primeira concepção, que optamos por chamá-la de opressora, nega a escola como um lugar adequado para a construção de reflexões sobre os problemas sociais, e fortalece a continuidade das práticas de intolerância religiosa, bem como, a impunidade de quem as fazem. A segunda concepção, a dos oprimidos, identifica que a intolerância religiosa é um grave problema social e busca levar esse debate para dentro da escola com o objetivo de chamar a atenção dos estudantes, famílias e professores para a necessidade de solidarizarmos com nossos irmãos e irmãs que diariamente são desrespeitados em sua liberdade de crença, não sendo tratados como sujeitos possuidores de direitos.

Foi em diálogo com a concepção dos oprimidos, que realizamos no dia 11 novembro de 2017 na Escola Municipal Maria das Mercês Aguiar localizada em Ibirité-MG, durante a feira de cultura “Consciência Negra”, o teatro “As religiões”, nome que foi carinhosamente escolhido pelos estudantes que participaram como atores. A construção dessa peça teatral teve como influências a relação entre a concepção opressora e dos oprimidos, e também, foi motivada pelo crime religioso ocorrido no dia 24 de outubro de 2017 na cidade de São Joaquim de Bicas-MG, onde cinco homens armados invadiram a “Casa Espírita Império dos Orixás de Nossa Senhora da Conceição e São Jorge Guerreiro” e ofenderam e ameaçaram os religiosos da casa e quebraram objetos que fazem parte de cultos religiosos de matrizes africanas. Conforme registrou o jornal Brasil de Fato dos dias 01 a 09 de novembro, os agressores ainda disseram que na região não teriam mais “macumbeiros” e que iniciariam a construção de uma igreja protestante.

Antes de apresentar aos estudantes a proposta da peça teatral, tivemos algumas etapas realizadas previamente. Primeiro, fizemos um levantamento dos percentuais de declaração religiosa da população de Ibirité onde constatou-se que a maioria das pessoas da cidade são de religiões cristãs, católicas ou evangélicas, e de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE de 2010, não havia na cidade nenhuma pessoa que se declarava como pertencente das religiões Umbanda e/ou Candomblé. Esse fato nos trouxe um incômodo visto que no Brasil os percentuais dessas religiões alcançam 0,61% da população brasileira. O passo seguinte foi consultar aos estudantes e demais professores da rede municipal se na cidade de Ibirité haviam casas e/ou terreiros de cultos religiosos de matrizes africanas. A partir disso, constatamos através de cinco pessoas que colaboraram, sendo estudantes e professores, que tanto haviam casas e/ou terreiros, como também existiam pessoas que frequentavam os cultos das religiões Umbanda e/ou Candomblé na cidade. Fato esse, que nos faz questionar os dados sobre declaração religiosa do Censo de 2010 do IBGE e que põe em evidência as seguintes hipóteses: as pessoas praticantes das religiões Umbanda e Candomblé estariam amedrontadas de se assumirem como tais? O poder público estaria negando a possibilidade de autodeclaração religiosa a essas pessoas?

Num segundo momento, trabalhamos com os estudantes do 6º ano do Ensino Fundamental da escola, os dados levantados sobre Ibirité e Brasil, para que assim, os estudantes verificassem a diversidade religiosa que temos em nosso país e cidade. Uma estudante disse que “pensava que somente existiam as religiões Católica e Evangélica”. Foram mais de 25 autodeclarações religiosas apresentadas às crianças e cruzamos os dados religiosos com os dados sobre declaração racial e de gênero. Discutimos também conceitos como: o que é macumba, religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras.

Durante a realização dessas atividades que antecederam nossa feira de cultura, foi observado como ainda é grande a prática do preconceito e discriminação das pessoas pertencentes as religiões de matrizes africanas. Alguns estudantes, enquanto conversamos sobre o assunto diziam: “Cruz credo” e faziam o sinal da cruz “Em nome do pai, do filho e do Espírito Santo, amém!”. Outro diziam: “Professor, nada do que você disser vai mudar minha opinião”.

Não era somente os estudantes que sentiam desconfortos em falar sobre as religiões de matrizes africanas e intolerância religiosa, mas outros colegas professores também ficaram incomodados, assim como as famílias de nossos educandos. O fato é que falar daquilo que não é comum causa estranhamento e requer que as pessoas saiam de suas zonas de confortos para se colocar no lugar do outro, esse mesmo que lhes deixam desconfortadas. E foi buscando dar continuidade nesse processo político e pedagógico de mexer com as conformidades que decidimos persistir desconfortando e apresentando para toda comunidade escolar durante a feira de cultura o teatro “As religiões”.

A terceira etapa foi a seleção dos estudantes interessados em participar. Em um convite realizado para os estudantes do primeiro turno durante o momento da acolhida que ocorre diariamente no pátio da escola e antes do início das aulas, obtivemos 18 estudantes interessados em compor o elenco teatral. Tivemos dois encontros para a preparação dos estudantes. No primeiro, conversamos bastante sobre a proposta do teatro e deixamos em aberto caso alguém não concordasse com a proposta poderia fazer questionamentos e/ou não haveria problema em optar por não participar. Depois disso, permaneceram no grupo apenas 15 estudantes. Logo em seguida, realizamos diversos jogos do Teatro de Oprimido, que serve para preparar os atores para a cena teatral e possibilita ao grupo se conhecer melhor e alcançar uma boa interação entre os participantes. No segundo encontro, construímos a proposta de encenação a ser apresentada e fizemos alguns ensaios. A reportagem do crime de intolerância religiosa ocorrido em São Joaquim de Bicas foi a referência para a construção da peça. A partir de nossas conversas sobre a intolerância religiosa muitos deles compreenderam bem a importância de respeitarmos a religião dos outros independente de quais sejam seus ritos e origem, pois a liberdade de crença é um direito de cada pessoa. Nesse momento eu professor, fiquei como mediador do processo, apenas ressaltei os pontos imprescindíveis para a cena tendo em vista o referido crime de intolerância religiosa. Os estudantes assumiram os postos de protagonista e de forma criativa e inovadora foram recriando e construindo as performances. As principais características da peça teatral foi: uma peça rápida, uma relação clara de opressão onde pessoas que dizem pertencer ao grupo religioso dominante (religião cristã) praticam a discriminação contra um grupo religioso de matriz africana, e a possibilidade da plateia intervir no final da apresentação da cena, a partir do conceito de Teatro Fórum, metodologia desenvolvida por Augusto Boal dentro do arcabouço de cenas do Teatro do Oprimido. No Teatro Fórum, as pessoas que assistem a apresentação teatral não são meras expectadoras, mas o envolvimento com o teatro é tão grande que elas se tornaram atores, devendo substituir um dos atores que representam os oprimidos. Para isso, é preciso que a dinâmica do teatro mexa com o público, fazendo com que ele se movimente e saia do seu lugar de passividade na plateia.

A quarta etapa foi a apresentação da cena. Percebemos que a partir da realização dos jogos teatrais os estudantes estavam mais soltos, o que não quer dizer que deixaram a timidez de lado, pois afinal, nossos atores foram meninas e meninos com idade entre 12 e 15 anos. Muitos estavam apresentando um teatro pela primeira vez. No dia de nossa feira de cultura, a escola estava cheia, com a presença de muitos familiares, estudantes e profissionais da escola. Os estudantes estavam entusiasmados e ansiosos. Combinamos com o grupo de chegar mais cedo para prepararmos o figurino. Para as vestes o grupo oprimido usou roupas longas confeccionados por TNT, um pano na cabeça para representar turbantes e ficaram descalços. Para o grupo opressor, os estudantes usaram roupas pretas e/ou sociais e sapatos fechados. Em relação ao cenário, utilizamos caixotes de madeira que representaram o espaço do terreiro de Umbanda e Candomblé. Antes de iniciar o teatro, orientei a plateia quanto a possibilidade da mesma em intervir na cena pois se tratava de uma peça teatral diferente, onde algumas pessoas substituiriam algum ator do grupo oprimido na busca por protagonizar outro roteiro para o teatro. Durante a apresentação o grupo oprimido estava celebrando o seu culto religioso cantando e dançando, buscando envolver o envolver o público e alegrá-lo com sua performance. Após aproximados dois minutos de apresentação, entrou o grupo opressor, com uma intensidade performática muito forte e agressiva, os estudantes usaram para a interpretação da cena, frases e palavras que são utilizadas no dia a dia por pessoas ou grupos que praticam a intolerância religiosa, buscando com isso, dizer que pertencer e praticar o culto das religiões de matrizes africanas não são coisas de “Deus”. Toda cena teatral durou por volta de três minutos e percebemos que o impacto da apresentação foi tão forte que o público esboçava diferentes reações: sustos, risos, desconfortos.

A quinta e última etapa foi a intervenção do público. A primeira a se manifestar foi uma mãe. Ela mostrou certa indignação com o que havia sido apresentado e alegou que não se sentiu representada na agressividade dos cristãos que foram retratados pelo grupo opressor do teatro. Para ela, Jesus prega o amor, e os cristãos também pregam o amor em Cristo, por isso não estavam corretamente representados por aquela agressividade que foi apresentada no teatro. Várias pessoas da plateia concordaram com a mesma e aplaudiram a sua manifestação. A segunda intervenção foi de outra mãe, que disse que discordava daquela que falou anteriormente, argumentando que o preconceito religioso é algo que existe e está velado em nossa sociedade, pois, para ela entrar com uma bonequinha preta que era trabalho de escola de seu filho, na casa de um patente, o mesmo alegou que precisaria consultar o pastor de sua igreja para saber se era permitido. Assim, ela concluiu dizendo que percebe que existe sim o preconceito por parte da maioria das grandes religiões. A terceira intervenção foi de uma pai, que afirmou que a cena que aconteceu representava o que acontece de fato em nosso país. Esse pai, além de brevemente argumentar sobre o que havia compreendido, escolheu um dos atores oprimidos para substituir e interviu na cena. Tivemos um pouco de dificuldade a princípio de encaminhar a intervenção dele, mas após entender o processo e ao reproduzirmos a cena novamente, quando o grupo opressor foi agredir o grupo oprimido ele tomou a frente, levantou as mãos para o céu e disse: “Mas quem é Deus para você?”. Nesse momento nossos brilhantes atores que encenavam o grupo opressor, sentiu que era hora de recuar, pois a cena ganhava um novo sentido.

A partir da realização desse teatro, percebemos que há na escola e na comunidade escolar, a necessidade de se debater mais sobre a intolerância religiosa. O impacto da peça teatral foi tão profundo que na semana posterior, outros familiares queriam mais esclarecimento do teor do que havia sido apresentado na escola. Claro que tanto no sentido de contribuir para a construção do debate, como também, de reforçar que aquilo não era tema de se discutir na escola. Com os estudantes, percebi que o impacto foi positivo e muitos relataram em atividades realizadas em sala conversas, sobre o quão necessário é respeitarmos a religião do próximo, referenciando o teatro que apresentamos na feira de cultura como atividade que os ensinaram a serem mais tolerantes e a buscarem a conhecer a religião do outro, evitando tecer quaisquer julgamentos etnocêntricos sobre aquilo que é de direito subjetivo do outro e que lhes causam desconfortos por não serem de seu conhecimento.

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