Infância, racismo e proteção social

Tradução: “A cor da pele não deveria ser uma sentença de morte”. Ato do movimento Black Lives Matter em Atlanta, GA, USA.

Lucas Ramos Martins*

Luciana Maciel Bizzotto**

Coletivo Geral Infâncias

Desde a morte por asfixia do segurança americano George Floyd, causada por um policial, em 25 de maio, o mundo se viu novamente envolvido em outro assunto que não a pandemia do coronavírus. O movimento de insurgência em torno da pauta racial, viralizado com a hashtag #BlackLivesMatter resultou num processo internacional histórico de retomada das ruas.

No Brasil, mesmo diante da divisão de opiniões sobre o risco de romper o isolamento social, ocorreram manifestações nas grandes cidades, aliadas a movimentos Antifa. A mobilização nacional também teve como enfoque os assassinatos recentes de crianças negras e periféricas, em sua maioria vítimas da violência policial.

A questão racial é um elemento estrutural que atravessa todos os grupos sociais. Contudo, se a infância é uma das possíveis chaves de leitura desse tecido, a experiência das crianças nos oferece pistas sobre a estruturação de nossa sociedade. Dados extraídos do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde revelam informações sobre o homicídio infantil no país: somente em 2018, morreram 135 crianças brancas, 542 pardas e negras e 54 indígenas, todas de até 14 anos. Reiteramos: é preciso problematizar o que reconhecemos como a categoria infância no contexto do genocídio negro no Brasil.

A tentativa de superar a visão que privilegia a experiência adulta em detrimento da infantil desaguou no movimento internacional pela defesa da criança enquanto sujeito de direitos. Por aqui, a política mundial de proteção proposta pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU resultou na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, que comemora seus 30 anos. Contudo, conforme Rita Marchi e Manuel Sarmento nos apontam, essa concepção de infância partiu de um contexto específico que já não dá conta de alcançar a realidade das infâncias contemporâneas – e talvez nunca tenha dado.

Os autores revelam que em nosso imaginário social moderno habita uma visão normativa, hegemônica e institucionalizada de infância. Não à toa, a tentativa de universalização dessa visão se empenhou na promoção do acesso à educação e na criminalização do trabalho infantil. A quem escapa da norma, cabe o rótulo do fracasso.

Paradoxalmente, essa mesma visão nos permitiu avançar na construção de uma organização de proteção social. Contudo, a criança não institucionalizada, ou que por outro motivo não se enquadra no ideal de infância, sequer tem ao seu alcance as condições sociais necessárias para ocupar esse lugar, o que se dá por razões diversas, relacionadas ao acesso à saúde, habitação, educação, cultura e lazer.

Em contextos de desigualdade estrutural, como no Brasil, crianças ausentes do ideário moderno de infância foram e seguem expostas a uma lógica de violência pela qual nos demonstram quais corpos infantis estão autorizados a vivenciar as dinâmicas do direito. A fala do avô de Ágatha Félix, menina de 8 anos, negra, moradora do Complexo do Alemão, deixa evidente uma tentativa da família de integrá-la às exigências dessa infância moderna: “Ela fala inglês, tem aula de balé, era estudiosa. Ela não vivia na rua, não”. Porém, para nossa sociedade, simbolizada na forma da violência policial, não importa o esforço desse avô: há infâncias, raças e classes que não se enquadram como sujeitos dignos de proteção e resguardo.

Essa realidade se repete na morte de Miguel Otávio, menino negro de 5 anos, filho de doméstica que trabalhava na casa da primeira-dama de Tamandaré, Sarí Corte Real. Ainda que dessa vez o crime não tenha se dado pelas mãos do Estado, impera a mesma lógica. Crianças negras não merecem atenção e responsabilidade social. Pode-se, portanto, permitir que andem sozinhas por um elevador, expostas a qualquer tipo de risco.

Existem muitos outros casos de crianças negras mortas neste ano – como João Pedro, de 14 anos, morto dentro de sua própria casa pela polícia, e Ítalo Augusto, de 7 anos, morto por uma bala perdida. Todos eles evidenciam que a lógica de cuidado, direito e proteção, apregoada pelo discurso da infância moderna e que se exprime em documentos como o ECA, destina-se a determinados endereços, onde habitam brancos e classes privilegiadas.

Tal lógica configura-se como a Necropolítica, conceito cunhado por Achille Mbembe e adotado por diversas análises políticas do mundo contemporâneo. A tese central é de que, para manutenção social e política do Neoliberalismo, é preciso um controle da morte e, portanto, da decisão de quem pode viver e quem deve morrer. Assim, o Estado neoliberal organiza-se a partir da criação de condições sociais de vida, para grupos legitimados como sujeitos. E de morte, para grupos descartáveis e não reconhecidos como produtores da história, da cultura e do saber, já que poderiam ameaçar a estabilidade hierárquica construída socialmente no capitalismo.

Consequentemente, Mbembe denuncia como vivemos uma dinâmica social na qual a existência do Outro implica em um atentado contra a nossa vida e, somente a partir de sua eliminação, é possível realizar nosso potencial de vida e de segurança. Ou, nas palavras de Vladimir Safatle, instaura-se o medo como afeto central das relações humanas: nossos vínculos se baseiam no medo do Outro, visto como invasor, e, assim, naturalizamos a impossibilidade de constituir mudanças sociais. Isso se torna ainda mais evidente na atual pandemia, quando a Necropolítica do Estado brasileiro aflora o medo que surge pela não visualização da reconstrução da vida e das relações como eram antes da crise sanitária.

Os protestos recentes sinalizam para a potência do movimento antirracista na luta por justiça social. Fazem emergir o afeto da esperança na reconstrução de laços, na militância e na mudança, por um basta nas mortes de negros e periféricos. Como sugere Safatle, a esperança é o afeto que alimenta a expectativa do bem, onde se visualiza a efetivação do que é certo ou justo. É possível que esbarremos novamente no medo da não realização da justiça, da banalização da violência e da naturalização das desigualdades. Por isso que, para evitar um imobilismo social, faz-se necessário deslocar o medo como afeto central das nossas relações.

É urgente a desnaturalização do risco e da morte como horizonte. Precisamos romper com a dinâmica que se prende nas estratégias de sobrevivência em detrimento da produção de outras lógicas que permitem a vida. A vida negra, de crianças negras como potência, como direito e estruturação social. Defendemos que isso passa necessariamente por uma desconstrução da ideia de infância moderna e por uma tentativa de compreender esse grupo a partir de suas realidades sociais. Talvez assim seja possível pensarmos na construção de políticas que nos aproximem de um sistema de proteção social para todas as crianças.

Fontes:

MBEMBE, Achille. “Necropolítica”. Arte & Ensaios, PPGAV, EBA, UFRJ, n.32, dez. 2016.

SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo / Vladimir Safatle. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

SARMENTO, Manuel Jacinto e MARCHI, Rita de Cássia. Radicalização da infância na segunda modernidade. Para uma Sociologia da Infância crítica, Configurações, Revista do Centro de Investigação em Ciências Sociais da Universidade do Minho, nº 4: 91-113. 2008.

*Doutorando em Educação e Inclusão Social, pela Faculdade de Educação da UFMG, na Linha de Infância e Educação Infantil. E-mail: lucasramosmartins@yahoo.com.br

**Doutoranda em Educação e Inclusão Social, pela Faculdade de Educação da UFMG, na Linha de Infância e Educação Infantil. E-mail: bizzotto.lu@gmail.com.


Imagem de destaque: @mcoswalt / Unsplash

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