Igreja e Direitos Humanos no Espírito Santo: duas páginas da mesma História

Pe. Kelder José B. Figueira

O presente artigo resgata a relação histórica da Igreja Católica do estado do Espírito Santo com os Direitos Humanos, um vínculo simbiótico desde a década de 1970, inspirada pela Doutrina Social da Igreja Católica e impulsionada pela identidade eclesial da Igreja capixaba, tendo as Comunidades Eclesiais de Base como eixo condutor e importante espaço de educação popular em Direitos Humanos.

A Doutrina Social da Igreja foi iniciada pelo Papa Leão XIII em 1891, com a célebre Encíclica “Das Coisas Novas”, como resposta ao comunismo e aos desafios da modernidade, impostos pela revolução industrial e pela reconfiguração política da Europa.

Ela alicerçou as práticas política e social da Igreja em quatro princípios permanentes e universais que são: dignidade da pessoa humana, subsidiariedade, solidariedade e bem comum. Sua consolidação vem se dando ao longo dos últimos anos, através de inúmeros documentos do magistério da Igreja.

Sete décadas depois, em um novo século, na Encíclica “Paz na Terra” (1963), o Papa João XXIII estabeleceu com clareza a relação da Igreja com os Direitos Humanos, afirmando que “Todo ser humano é pessoa, sujeito de direitos e deveres”.

João XXIII descreve na encíclica os direitos inerentes à pessoa humana, como o direito à existência e a um digno padrão de vida; os direitos que se referem aos valores morais e culturais; o direito de honrar a Deus segundo os ditames da reta consciência; o direito à liberdade na escolha do próprio estado de vida; os direitos inerentes ao campo econômico; o direito de reunião e associação; o direito de emigração e de imigração; e direitos de caráter político.

No Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tem sido ferrenha defensora dos princípios fundamentais da Doutrina Social da Igreja, expressos nos inúmeros documentos pastorais e sociais publicados desde a sua fundação em 1952, sob a égide do Concílio Vaticano II – 1962-1967.

Com os desdobramentos do Concílio Vaticano II na América Latina, através das Conferências Episcopais de Medelín – 1968 -, e Puebla – 1978 -, a Igreja Católica assume no Espírito Santo a intransigente defesa da dignidade humana, consolidando o binômio fé e vida, pilar fundamental das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) nascentes e que foram determinantes para a organização dos movimentos sociais no Estado, principalmente o Movimento de Direitos Humanos.

As Comunidades Eclesiais de Base são pequenas comunidades rurais ou urbanas, organizadas por conselhos de leigos (as) que se distribuem em diversas equipes de serviço para administrar as atividades litúrgicas e pastorais da comunidade.

No número 643 do Documento de Puebla de 1978, os bispos latino-americanos afirmam que “as comunidades eclesiais de base são expressão de amor preferencial da Igreja pelo povo simples; nelas se expressa, valoriza e purifica sua religiosidade e se lhe oferece possibilidade concreta de participação na tarefa eclesial e no compromisso de transformar o mundo”.

A estrutura das CEBs, a partir das equipes de serviços, organizadas pelos conselhos coordenados por leigos (as), potencializou a educação popular, principalmente a Educação em Direitos Humanos, uma vez que as reuniões e as celebrações das comunidades se davam em torno de questões concretas, relacionadas ao dia a dia do povo, como a luta pela moradia, educação, saúde, transporte coletivo e segurança pública e os acessos à água potável e à energia elétrica.

As décadas de 1970 e 1980 foram muito fecundas no Espírito Santo com a efervescência das CEBs, que se tornaram núcleos agregadores e irradiadores das questões sociais que emergiram no Estado com o êxodo rural.

Incidindo nos “bolsões de pobreza”, como eram chamadas as regiões ocupadas pelos pobres, a Igreja no Espírito Santo assumiu o protagonismo da organização social, através de sindicatos e movimentos populares.

A Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória foi criada neste ambiente e teve relevante papel na articulação dos movimentos populares, consolidando-se com o  enfrentamento direto à violação dos Direitos Humanos, no período da ditadura militar, sendo impossível, à época, se pensar em movimentos sociais que se reunissem fora dos espaços da Igreja.

Em 1984, como enfrentamento ao crescente número de acidentes de trabalho no município da Serra e ao extermínio “de menores” na Grande Vitória, foi criado o primeiro Centro de Defesa dos Direitos Humanos, no município da Serra, a partir de um grupo de católicos, luteranos e metodistas.

Com a abertura democrática, os movimentos sociais, principalmente o Movimento de Direitos Humanos, puderam sair das sacristias, mostrar a cara e caminhar livremente pelas ruas. A década de 1980 foi marcada pela organização sindical e pela efervescência de movimentos sociais no Estado. Muitos deles motivados pelos temas das Campanhas da Fraternidade.

Em 1999, com a violência crescente e as instituições políticas no Estado emparelhadas pelo crime organizado, que tinha como expoente principal o presidente da Assembleia Legislativa do Estado, a Arquidiocese de Vitória, junto com o Movimento de Direitos Humanos, a Ordem dos Advogados do Brasil, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs e a Universidade Federal do Espírito Santo, fundou o Fórum Reage Espírito Santo de combate à violência e à impunidade.

O Fórum foi fundamental para retomar o controle das instituições públicas, incidindo diretamente nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com inúmeras atividades e participação de entidades nacionais e internacionais, ligadas aos direitos humanos como as ONGs Anistia Global, Ação Global, Conectas Direitos Humanos, dentre outras.

O Fórum Reage Espírito Santo viabilizou diversas atividades de inspeção de organismo internacionais como a Plataforma interamericana de Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Alta Comissaria de Direitos Humanos, Asmam Jahanji.

Viabilizou também a incursão de diversos conselhos nacionais como o Conselho Nacional de Direitos da Pessoa Humana, que deferiu o pedido de intervenção federal no Estado em 2002, causando uma crise política nacional, de repercussão internacional, com a renuncia do Ministro da Justiça à época.

Além da violência, a década de 2000 no Espírito Santo foi marcada por outro problema com sérias violações dos Direitos Humanos: o encarceramento em massa e as condições desumanas e degradantes dos cárceres capixabas.

As condições do cárcere no Espírito Santo provocaram outro pedido de intervenção no Estado, feito pelo Conselho Nacional de Política Penal e Carcerária, instado pelas denúncias da Comissão de Justiça e Paz ao Conselho Nacional de Direitos da Pessoa Humana e o Conselho Estadual de Direitos Humanos, juntamente com Associação de Mães, Familiares e Amigos das Vítimas da Violência no Espírito Santo.

Os presídios do Estado ficaram internacionalmente conhecidos como “masmorras capixabas”, quando o Conselho Estadual de Direitos Humanos denunciou às cortes internacionais, as crueldades praticadas pelo Estado. As denúncias internacionais surtiram efeitos e custou ao Brasil um assento no Conselho de Segurança da ONU. O Governo do Estado teve que tomar inúmeras medidas para atender em melhores condições a população carcerária e, ainda hoje, responde às cortes internacionais pelas violações cometidas.

Muitas outras ações têm sido desenvolvidas a partir da parceria entre Igreja e Direitos Humanos no Espírito Santo, revelando que as comunidades de fé podem se tornar lugar privilegiado de educação para os Direitos Humanos. A mais recente é a criação do Fórum Permanente Igreja e Sociedade em ação. Mas, muito ainda precisa ser feito. A defesa da dignidade humana e de toda criação é uma missão árdua e permanente.


Imagem de destaque: Instituto Humanitas/reprodução

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