Fortalecendo o direito à educação e à escola: uma experiência em Pega Tesu

Cláudia Abreu

Em 2009 conheci a professora Dra. Esther Grossi, fundadora do GEEMPA¹ e uma parte de sua grande equipe. Naquela oportunidade, atuava como coordenadora no setor pedagógico da Secretaria de Educação de Betim e, a rede de ensino apresentava um grande número de alunos (as) em defasagem idade/ano de escolarização, não alfabetizados (as) necessitando de um programa de correção de fluxo. Por intermédio do MEC, acessamos o trabalho do GEEMPA que compartilhou seus estudos e pesquisas sobre alfabetização e os princípios pós-construtivistas que embasam o trabalho que desenvolvem.

Nesse processo vivenciei experiências extraordinárias e desde então, a cada ano novas aprendizagens vão sendo incorporadas à minha maneira de compreender a aquisição das competências de ler e de escrever. Entre tantos ensinamentos, aprendi com o GEEMPA que “todos podem aprender” e que “democracia só existe se ensinamos a todos”. Nessa interação pude também redimensionar minha prática pedagógica e ampliar, de forma significativa, minha visão sobre educação, democracia e alfabetização.

A partir de um olhar mais apurado e apoiado às lentes teóricas do pós-construtivismo, cheguei à Escola Católica “Pega Tesu” na capital da Guiné-Bissau², oportunidade proporcionada por uma das minhas filhas, a quem agradeço imensamente. Foi um mês de muitas aprendizagens, regado de aventuras, muito afeto e carinho que ficarão guardados no coração.

Localizada em uma tabanca, expressão africana (Guiné Bissau) que significa vila, aldeia ou interior, onde vivem cerca de duas mil pessoas, a escola funciona em uma casa cedida por um dos moradores locais, sem energia elétrica e água encanada. Atende 187 alunos (as) de 4 a 18 anos, matriculados nos anos iniciais, organizados em seis turmas. Estas são distribuídas nos espaços internos e externos da casa. As classes que ficam no quintal, ao ar livre, saboreiam sombras de árvores, dentre elas uma frondosa mangueira, que me remeteu ao mestre Paulo Freire. Confesso que o Paulo nunca esteve tão presente em minha memória e em meu coração como naquele lugar.

Falantes do crioulo, onde a língua oficial é a portuguesa, meu contato com alunos(as), com professores(as) foi bastante interessante. De maneira resumida, posso dizer que nossa comunicação foi prontamente estabelecida e que a comunidade escolar é formada por pessoas pacíficas e esperançosas e que me acolheram de maneira carinhosa e muito respeitosa.

Fui muito bem recebida pelos(as) alunos(as). As crianças – pega tesu (sabidas, espertas) me receberam com canções, abraços e muita alegria. Elas chamaram a minha atenção pela maneira como se portavam. Sempre fortes, humildes, obedientes, elas demonstram um enorme respeito aos adultos. De maneira geral os(as) alunos(as) apresentam no olhar uma ingenuidade e uma pureza profundas, que tocaram a minha alma.

Os(as) professores(as) sem nenhuma desconfiança relataram suas experiências no trabalho, os desafios e medos, as limitações e expectativas enquanto professores alfabetizadores. Neste primeiro contato, criou-se um vínculo forte e afetuoso entre nós. A partir de então várias reuniões se tornaram realidade. E nos encontros que sucederam fomos aprimorando as trocas e fortalecendo os laços. Pude compartilhar algumas práticas educativas vivenciadas ao longo da minha trajetória enquanto professora e pedagoga e aprender a esperançar. Para mim, conhecer as professoras Patrícia e Artimisa e os professores Orlando, Augusto, Wilson e Camnate foi um imenso prazer. Pessoas resilientes, altruístas, cativantes e sedentas de formação.

Assim, ao longo do mês de fevereiro fomos discutindo a prática pedagógica e os materiais didáticos possíveis de utilizar em meio a total escassez de recursos. Discutimos sobre a importância do uso do crachá, dos jogos didáticos, da criação de um possível ambiente alfabetizador, do contrato didático, do trabalho em grupo, do uso do alfabeto em salas de alfabetização e fundamentalmente, sobre a crença de que “todos podem aprender”…

Usamos tampinhas de garrafas para fazer alfabeto móvel, caixas de papelão para confeccionar material para as turmas, sementes de palmeiras como material manipulativo, a terra como material para as atividades de arte.  Foi um período fértil e muito prazeroso apesar de curto.

Antes do meu retorno ao Brasil a vontade de criar uma ONG se desenhou no coração de Maíra, a guineense que me apresentou à escola e ao universo descrito acima, com quem sempre mantenho contato pela Internet. O projeto dela está em fase protocolar de documentação junto às autoridades locais. A expectativa é estreitar relações entre professores(as) do Brasil e da Guiné Bissau de forma institucionalizada para formação de professores(as), ofertando assim apoio às escolas que se encontram nas tabancas mais afastadas da capital, aonde chega pouca ajuda humanitária.

Deixei o país no início de março em meio a mais uma crise política. Cheguei aqui junto com a apreensão relacionada ao coronavírus e já sonho em voltar. Tenho hoje a esperança de que, através de trabalhos como o que Maíra propõe, o direito à alfabetização de crianças, adolescentes e jovens possa ser garantido no país que apresenta um dos menores IDH do planeta.


¹ Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia da Pesquisa e Ação – ONG que atua há 47 anos. Trabalha com propostas didático pedagógica construída a partir do diálogo entre as mais bem fundamentadas teorias da aprendizagem e os mais complexos problemas de ensino-aprendizagem em sala de aula, notoriamente, em escolas públicas.

² A República da Guiné-Bissau fica na África Ocidental. Possui 36.125 km2 e uma população de cerca de 1.500.000 de habitantes. Autêntico mosaico étnico-cultural, com mais de duas dezenas de etnias (2005). A Guiné-Bissau foi a 1ª colônia africana de Portugal a aceder à independência, após 5 séculos de presença portuguesa e 11 anos de luta armada de libertação, conduzida pelo PAIGC (Partido Africano para a independência da Guiné e Cabo Verde), movimento de libertação que levou à independência a Guiné-Bissau e Cabo Verde. De acordo com o PNUD é o segundo país de expressão portuguesa na categoria de desenvolvimento “baixo”, ocupando o 177º lugar. Em 2017 teve o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano de 0,455. Fonte: “O CRIOULO DA GUINÉ-BISSAU : LÍNGUA NACIONAL E FACTOR DE IDENTIDADE NACIONAL” de Filomena Embaló para a Revista Brasileira de Estudos do Contato Linguístico.

³ A língua oficial na Guiné-Bissau é o português. Entretanto esta não é a língua de comunicação nacional.  Apenas 13% dos guineenses falam português, incluindo os que a têm como 2ª, 3ª ou até mesmo 4ª língua para a maior parte dos guineenses. A língua franca é o crioulo guineense. Fonte: “O CRIOULO DA GUINÉ-BISSAU : LÍNGUA NACIONAL E FACTOR DE IDENTIDADE NACIONAL” de Filomena Embaló para a Revista Brasileira de Estudos do Contato Linguístico.

Imagem de destaque: Bandeira de Guiné-Bissau – Fonte: www.slon.pics/Freepik

 

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