Febre alta

Dalvit Greiner de Paula

Bartolomeu Campos de Queiroz, fumante inveterado de saudosa memória, disse-nos uma vez que, quando adoecia na infância, sua mãe o levava à benzedeira, dava-lhes chás e aviava-se com o farmacêutico de sua cidade natal. Segundo ele, não sabia qual dos três fazia efeito – ou se os três faziam efeito – o que interessava é que ele se curava e então continuou, pela vida afora, com esse tipo de tratamento: crença, medicina popular e ciência. Claro que o Bartolomeu sabia o que estava fazendo. Viveu quase setenta anos. Soube se cuidar, pois tinha fôlego de sete gatos.

Bernardo Vasconcelos morreu de febre amarela no dia 1 de maio de 1850, aos cinquenta e cinco anos de idade. Portanto, já se vão 170 anos da morte desse senador pela província de Minas Gerais que nós, por obra de uma tese de doutorado, resolvemos ressuscitar. Mas, o que tem o nosso senador com o presente, além de ocupar o meu tempo e a coincidência de morrer no dia do Trabalhador. Primeiro, àquela época não se comemorava o dia do Trabalhador: todo mundo que trabalhava era escravo. Segundo, porque morreu de teimosia, não se cuidou em casa nem procurou médico na hora certa. Morreu numa das primeiras epidemias de febre amarela no Rio de Janeiro.

Dois mineiros cultos. O primeiro, mais alegre, com certeza. O segundo tinha fama de turrão e mal-humorado. Bartolomeu acreditava em tudo que lhe fizesse bem. Bernardo chegou a desdenhar do surto de febre amarela numa sessão do Senado Imperial, dias antes de morrer. Mas, não foi castigo. Foi negligência. Não apenas o senador como também a Academia de Medicina, resultado de um nascente espírito científico e das poucas pesquisas no Brasil. Considerava a febre do Rio de Janeiro diferente da febre da Bahia onde toda a população de oitenta mil habitantes havia se infectado e dois mil morreram. Contraditoriamente, considerou-a uma ligeira febre que se dissiparia em dois dias. Mesmo assim, a Comissão de Saúde do governo imperial mandou construir três novas enfermarias: na rua da Misericórdia, no Saco do Alferes e na Praia Formosa. A atitude da Comissão de Saúde mostra-nos que, no seu cotidiano o Império não estava preparado para uma epidemia, mas com a rapidez necessária trouxe a ciência para o centro da ação. Porém, nada disso serviu para salvar Bernardo Vasconcelos.

Mas, o que nos interessa é a diferença das maneiras de acreditar. No Rio de Janeiro imperial, após a epidemia de febre amarela cresceu a crença no sebastianismo. Numa crença bastante bem estudada por Marc Bloch, de que os reis europeus curavam doenças incuráveis apenas com o tocar no seu manto real, demonstrava o apelo e o desespero de parte da população que não via na ciência a possibilidade de recuperar a sua saúde. Com o tempo, tal crença foi se reduzindo e as procissões que seguiam suas majestades foram diminuindo à medida que a ciência conseguia a cura das doenças após a Revolução Científica. Hoje, ninguém mais acredita que tocar o manto do rei cura uma doença. O problema é a transferência que se fez da divindade. O retorno da divindade ao totem e à relíquia tem levado pessoas a desacreditarem de medidas simples que a ciência já demonstrou serem eficazes.

A medicina brasileira lutou muito contra aquilo que considerava charlatanismo no século XIX combatendo os curandeiros e suas ervas. Com essa atitude jogou fora muito do conhecimento curativo de negros e indígenas que conhecem muito bem a floresta onde vivem nos quilombos e aldeias. As vacinas e o advento da penicilina na década de 1920 tornaram-se a panaceia definitiva que, com sua cura rápida de doenças infecto-contagiosas deu um alívio na população urbana. A feitiçaria baseada nas ervas foi relegada aos incrédulos em uma nova medicina.

Não apenas as crenças, mas nossa atitude filosófica significa questionar tudo e todos. Conhecer, observar, questionar, criticar e produzir uma nova atitude. Desacreditar da ciência, ou seja, de um daquele tripé proposto por Bartolomeu Campos põe em risco não apenas a nossa vida, mas a nossa coletividade. Desdenhar dos esforços e dos apelos que os governos sérios vêm fazendo para cuidar da população é colocar em risco a humanidade. Como vimos, a epidemia de febre amarela na Bahia em 1850 matou duas mil pessoas, que representavam 2,5% da sua população. Essa proporção, hoje, em Belo Horizonte, significa a morte de 62.500 pessoas. No Brasil, significa a morte de 5.250.000 pessoas.

Então, nada de cloroquinas, nada de divindades! Eles são úteis, mas não agora, não para isso. Hoje, na imensidão de nossas cidades, muito de isolamento social: remedinho bom e barato!


Imagem de destaque: Rovena Rosa/Agência Brasil

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