Família e poder paterno: (des)construindo conceitos em tempos de projeto Escola sem partido – exclusivo

Prof. Dr. Christian Lindberg L. do Nascimento

O texto constitucional é explícito, em seu artigo 205, quando afirma que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família. Por outro lado, a legislação infraconstitucional faculta, aos pais, o envio de sua prole para a instituição escolar, desde que o jovem cidadão submeta-se aos exames nacionais, com o intuito de ele ascender aos diversos níveis da educação formal. Mesmo com esta normativa, a maioria esmagadora dos pais e/ou responsáveis envia as crianças e adolescentes para a escola, consagrando-a como o espaço mais legítimo para educar alguém.

Ciente desta realidade, os defensores do denominado projeto Escola sem partido (ESP) lutam para que os pais eduquem moralmente seus filhos, de acordo com as próprias convicções. Entretanto, que convicções são essas? É a registrada pelo 9º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, divulgado em 2015, que afirma que 70% dos casos de estupro acontecem com crianças e adolescentes e que 24,1% dos agressores são os próprios pais ou padrastos? É a registrada pela Central de Atendimento à Mulher (disque 180), que registra que 80% dos casos de violência reportados pelas mulheres têm no parceiro (marido ou namorado) o responsável? Será aquela estudada pela Secretaria de Direitos Humanos que, em 2013, afirmou que 58,9% das vítimas de homofobia conheciam o agressor e que o local mais frequente para este delito é a casa (38,6%), seguido da rua (30,8%)?

Estas indagações conduzem o leitor a concluir que a família, do ponto de vista moral, é o principal ambiente onde práticas condenadas pela maioria da população acontecem, dados que os idealizadores do ESP desprezam ou ignoram, ao argumentarem favoravelmente em prol do caráter exclusivo dos pais em educar moralmente a própria prole, o que remete à discussão que gira em torno de duas questões: 1) Qual é o perfil da família brasileira?; 2) As crianças são propriedade dos pais? Estas questões são fundamentais para averiguar a consistência conceitual do citado projeto.

Tentando responder à primeira indagação, algumas informações contidas no Censo Demográfico são relevantes. Em 2010, houve o aumento da multiplicidade na composição da família brasileira. Se em 2000 foram observados 11 tipos de arranjos familiares, em 2010 este número saltou para 19. Outro item a ser destacado é que 49% das famílias eram compostas por casais heterossexuais com filhos, tido por alguns como o modelo da família tradicional. O mesmo estudo diagnosticou a existência de 60 mil famílias homoafetivas, sendo que 53,8% formadas por mulheres. Por fim, destacam-se as 10,1 milhões de famílias que têm mães ou pais solteiros como referência.

Em 2013, o IBGE, por meio dos dados coletados no PNAD, divulgou outro estudo que diagnosticou a tendência de crescimento de famílias composta por casais homoafetivos, passando esse arranjo familiar dos 60 mil, em 2010, para 67 mil. A dita família tradicional foi reduzida para 45% da composição familiar brasileira. Este diagnóstico também percebeu que: 1) Há, no Brasil, 65,9 milhões de arranjos familiares registrados; 2) 13,2% das famílias brasileiras são compostas por uma única pessoa, registrando o aumento de mais de 100% nos últimos 30 anos; 3) 49,1% dos arranjos familiares ocorrem por questões financeiras; 4) 38% das famílias têm como referência a mulher. Em 2002 essa proporção era de 28%; 5) O fenômeno das famílias reconstituídas se mostrou bastante significativo, atingindo 16,3% dos casais com presença de filhos. O estudo concluiu que a expressão “família tradicional” não contempla mais a realidade da família brasileira. As pessoas estão experimentando a vida familiar de diversas formas. Para explicar estas mudanças, a pesquisa destaca alguns motivos: 1) Queda da taxa de nupcialidade; 2) Adiamento do casamento e da fecundidade; 3) Aumento no número de divórcios; 4) Maior presença da mulher no mundo do trabalho. Em suma, o cenário atual é marcado por uma composição familiar diversificada e múltipla, a ponto de impossibilitar qualquer tipo de padronização, muito menos apontar, como parâmetro moral, a dita família tradicional.

Além do aspecto demográfico, parece oportuno discutir se a criança é propriedade ou não dos pais, celeuma que rendeu boas análises filosóficas no século XVII. Orientados em torno do conceito de poder paterno, Hobbes (1588-1679) e Locke (1632-1704) expuseram maneiras distintas de pensar esta questão.

Do primeiro, pode-se afirmar que o poder paterno é exercido naturalmente pela mãe, mas, com o estabelecimento da sociedade contratual, este poder é transferido para o pai. O exercício do poder paterno se justifica pelo fato de a criança ser incapaz de garantir a própria sobrevivência. Entretanto, Hobbes argumenta que há uma relação afetiva entre aquele que exerce o poder paterno – o pai – e aquele que é submetido a este tipo de poder – o filho. Consequentemente, a criança, ao crescer, vai honrar os cuidados que o pai teve com ele.

Locke acrescenta mais elementos para o debate. O primeiro aspecto a ser destacado é o fato de que o poder paterno é uma atribuição do pai e da mãe, e não apenas do pai. Além disso, argumenta que não há relação alguma entre este tipo de poder com o político. A autoridade paterna é transitória e deve ser exercida até o momento em que os filhos consigam preservar-se e garantir a própria liberdade. Entretanto, diferentemente de Hobbes, Locke tem uma teoria educativa e nela admite a possibilidade de os pais contratarem alguém para educar os próprios filhos.

Se o poder paterno é transitório para ambos os filósofos, Hobbes e Locke não defendem a educação como um direito de todos, como preconiza a nossa constituição. Quem desenvolve toda uma argumentação em torno do tema é Comenius (1592-1670), em sua Didática Magna. Ele é taxativo: deve-se ensinar tudo a todos. O tudo engloba o ensino das ciências, das artes, das línguas e da moral. O todo contempla homens e mulheres, pobres e ricos, em todos os locais. Ele afirma que a escola é o ambiente propício para tornar comum a todos os conhecimentos produzidos no decorrer dos tempos. Para tanto, parte-se da premissa de que raros são os pais que sabem ou podem educar os filhos e que têm tempo suficiente para fazê-lo. Justifica para isso que, se o pai (chefe) de família não cuida ele mesmo de tudo o que é necessário à administração doméstica – já que depende do padeiro para comer pão, do sapateiro quando precisa de um sapato, etc.-, por que não deve fazer o mesmo também com a educação dos filhos?

Em suma, dois dos principais argumentos dos defensores do projeto ESP não têm sustentação. Os dados oficiais sobre a estrutura familiar brasileira e a literatura educacional e filosófica contrariam seus postulados. Como ficou observado, não existe a família brasileira, mas as famílias brasileiras, compostas por diversos tipos de arranjos familiares. Por outro lado, a criança não é uma propriedade do pai ou dos pais, que – portanto – não têm o direito exclusivo de educar moralmente sua prole. Como foi visto, já no século XVII os filósofos defendiam que os pais transferissem a um terceiro (preceptor ou escola) a educação dos filhos. Como identifica Olivier Reboul, no livro Filosofia da educação, por mais que a apropriação dos conteúdos educativos seja individual, é ao interesse coletivo que se deve mirar a educação. A educação moral não é de interesse privado, mas pertence ao interesse coletivo, por isso que ela tem que respeitar a diversidade social existente no país.

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