Exemplar falência da esfera pública (e mais duas notas)

Alexandre Fernandez Vaz

Um dos pontos centrais de um projeto de formação que de maneira permanente e a longo prazo pretenda educar para a esfera pública, é demarcar a distinção entre esta e a vida privada. Nos tempos de hoje, mais do que antes, a linha de fronteira não é nítida, mas ela segue valendo como condição de possibilidade para a política, aquela experiência que pensa nos termos de uma vida em comum, ainda que sem intimidade – esta é destinada, justamente, ao âmbito privado.

Temos falhado nesse ponto, como em muitos outros no rol de fracassos que é nossa educação. O problema não é só na escola. A questão também diz respeito a atos praticados por figuras públicas que, no exercício exemplar, dizem de sua posição. Quando um presidente da república se deixa fotografar em conversa com cientistas, está mostrando que a melhor resposta a um problema, naquele momento, é a ciência. Tal ato não vale apenas para o eventual momento difícil que se possa estar passando, mas tem efeito muito mais amplo, ajudando a consolidar uma abordagem dos problemas que, nas circunstâncias, é a mais adequada.

Voltemos ao Brasil, já que o caso acima não se aplica a nós. Jair Messias Bolsonaro convocou para o último domingo um jejum como forma de combater a disseminação da Covid-19. A lógica deve ser a de que o sacrifício aplacaria a ira divina, considerando que viria do além o vírus multiplicador. Em matéria de fantasia isso supera até a que afirma que a doença teria sido obra do Partido Comunista Chinês, talvez para que o país asiático pudesse agora vender com vantagens seus produtos, como respiradores mecânicos, luvas e máscaras. No dia marcado, o presidente, que parece agora reconhecer a gravidade da pandemia (não sei bem se concordo com isso), recebeu um grupo de pastores no Palácio da Alvorada. Na ocasião, segundo Ricardo Kotscho, um deles teria, após uma benção, professado que ninguém mais no Brasil morreria por infecção com novo corona vírus.  E que os opositores do mandatário estariam a serviço do “satanás”.

Antes do episódio acima, ainda naqueles dias em que Bolsonaro repetia que a pandemia que matava em série em vários países era gripezinha sem importância, perguntou-se a ele sobre o resultado do exame a que teria se submetido, ao que respondeu que fora negativo. Ao ser solicitado a mostrar o documento comprobatório, recusou-se a fazê-lo, apoiando-se na premissa segundo a qual sua palavra valia mais que qualquer impresso. Com a insistência, o Ministro de Estado da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, saiu em socorro ao chefe, justificando que, como o prontuário médico, os resultados seriam documento privado. O vice-presidente Hamilton Mourão, por sua vez, afirmou que a palavra do presidente da República valeria mais que o papel.

Bolsonaro pode ter a religião que quiser? Claro que sim, além de ser mais que razoável esse direito, a Constituição lhe dá guarida, como a todos nós, permitindo, inclusive, que não se professe qualquer tipo de fé. A questão não é essa, mas sugerir à população, na condição de presidente da República, uma solução que não corresponde aos fatos e, além disso, usar o espaço oficial do Alvorada para privilegiar um campo religioso, em detrimento a tantos que convivem – alguns muito perseguidos – no Brasil.

Bolsonaro deveria ter mostrado o resultado oficial do exame a que se submeteu? Sim, porque na condição de presidente, tal documento, embora privado, é de interesse público. E sua palavra não é superior ao que está escrito, e isso nada tem a ver com qualquer julgamento moral. No âmbito público vale o que é impessoal, tanto quanto estivermos em um regime democrático. Da mesma forma que a violência doméstica, que acontece em âmbito privado, é de interesse público, a contaminação ou não do presidente da República, em especial em um momento de pandemia e considerando a posição que o nosso tem tido, também é.

Sem uma esfera pública ampla e bem construída, não há política que tenda à democracia. Os exemplos acima podem parecer prosaicos, mas isso acontece porque estamos mais que acostumados à privatização do que é público como algo natural. Não, não é.

Nota 1

No final dos anos 1980 e início da década seguinte tínhamos na Nicarágua um sonho realizado. A Frente Sandinista de Liberación Nacional derrubara o ditador Anastacio Somoza, libertando o país da condição de tutela dos Estados Unidos. Daniel Ortega, eleito presidente pela primeira vez em 1984, esteve na oposição vários anos, em tempos difíceis e controversos para sua terra natal e para o mundo. Agora, em seu quarto mandato, tendo a esposa como vice-presidente, em meio à forte repressão a que vem submetendo opositores e sob acusações de corrupção, Ortega ataca de negacionista frente ao novo coronavírus. Para coroar o desastre, o poeta Ernesto Cardenal, a voz da Revolução, está sob censura. Inaceitável. O campo democrático-popular não deve se calar frente ao arbítrio, ou será, no melhor dos casos, conivente com ele. No pior, cúmplice.

Para minorar a tristeza, sugiro o filme Sandino (1990), do chileno Miguel Littin.

Nota 2

Por falar em cinema, uma boa programação para esses dias é La última cena, do cubano Tomás Gutiérrez Alea. De 1976, o filme narra cinco dias da semana santa em um engenho de cana em Cuba, no século XVIII. Há um europeu delirando com um ato de expiação, há doze escravos travestidos de apóstolos. Dor, luta, liberdade.


Imagem de destaque: José Cruz/Agência Brasil

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *